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Agradecimento 特此致謝 A aquisição do manuscrito e a publicação deste livro foram financiadas pela Fundação para o Desenvolvimento da Universidade de Macau 手稿的購買及本書的出版 均由澳門大學發展基金會資助

Relação Oficial da Embaixada do Rei D. João V de Portugal ao Imperador Yongzheng em 1725-1728 葡萄牙國王若望五世1725至1728年 向雍正帝遣使官方報告 pelo Padre Francisco Xavier da Rua 弗朗西斯科.澤維爾.達魯阿神父 撰寫

Relação Oficial da Embaixada do Rei D. João V de Portugal ao Imperador Yongzheng em 1725-1728 Autor : Padre Francisco Xavier da Rua Transcrição em Português : Paulo Viegas Tradução para Chinês : Jin Guoping Design e composição tipográfica: Enrich Publishing (Macao) Limited Editor : Universidade de Macau Ano : Dezembro 2023 ISBN : ISBN 978-99965-1-196-7 Volume de impressão : 1,000 Pertencente à Biblioteca da Universidade de Macau Fundação para o Desenvolvimento da Universidade de Macau 葡萄牙國王若望五世1725至1728年向雍正帝遣使官方報告 作者:弗朗西斯科.澤維爾.達魯阿神父 撰寫 葡萄牙文轉寫:保羅.維埃加斯 中文翻譯:金國平 設計及排版:天窗出版社(澳門)有限公司 出版:澳門大學 年份:2023年12月 國際書號:ISBN 978-99965-1-196-7 印量:1,000本 澳門大學圖書館收藏 本書由澳門大學發展基金資助出版

ÍNDICE 目 次 I. Fac-símile do Manuscrito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 手稿影印本 II. Transcrição em Português – Paulo Viegas . . . . . . . . . . . . 155 葡萄牙文轉寫 — 保羅.維埃加斯 III. Tradução para Chinês – Jin Guoping . . . . . . . . . . . . . . . 233 中文翻譯 — 金國平

Fac-símile do Manuscrito 手稿影印本 I

Paulo Viegas 保羅.維埃加斯 Biblioteca da Universidade de Macau 澳門大學圖書館 Transcrição em Português 葡萄牙文轉寫 II

Transcrição em Português 1 1 55 77 Critérios de leitura Na leitura do diário de Alexandre Metelo algumas importantes técnicas foram utilizadas: a transposição dos caracteres do documento original para formas atualizadas de escrita, a identificação das abreviaturas, termos e grafias utilizadas no texto original, a interpretação dos sinais de pontuação usados, a separação ou a união de palavras que não foram separadas ou unidas no texto original, a leitura e a transcrição de números, e a identificação de erros no texto original. Teve-se em conta a comparação de caracteres e estilos da época em que o documento foi produzido, já que os estilos de escrita variam de época para época e entre os diferentes tipos de documentos. E finalmente, através de tudo isto, obteve-se o significado do texto, tendo sempre em conta que o autor escreveu da maneira que imaginou correta, ainda sem o suporte de uma gramática estabelecida, dando origem a variações de escrita e caligrafia pessoal. Manteve-se a grafia do tempo dos nomes próprios e comuns, sobretudo nomes e termos chineses romanizados. Introduziram-se comentários em nota para os casos especiais, facilitando assim a compreensão do texto pelo leitor menos familiarizado com a leitura de documentos manuscritos antigos. As situações de letras ou palavras ilegíveis ou em falta são indicadas dentro de colchetes “[ ]”. As letras/sílabas ou vocábulos cuja escrita dê margem a dúvidas no momento da transcrição, são indicadas entre colchetes e em fonte itálica. Este manuscrito está excepcionalmente preservado, pelo que não apresenta as dificuldades extrínsecas ao texto que existem em muitos outros manuscritos, que não evitam algumas lacunas e falhas que podem comprometer o sentido do texto, como por exemplo os borrões do papel, a deterioração do suporte, a má caligrafia ou esmaecimento da tinta.

Transcrição em Português 159 Relação da Embaixada e do que por respeito dela sucedeu que El-Rei Nosso Senhor D. João o 5.º no ano de 1725 mandou ao Imperador da Tartária e China cujo reinado era Yum Chim. Havia El-Rei Nosso Senhor em um dos anos antecedentes ao de 1725 recebido parte (porque o mais se queimou com a nau em que vinha no porto do Rio de Janeiro)1 de um grandioso mimo2, que o Imperador da Tartária e China, cujo reinado era Kam Ky lhe mandou pelo Muito Reverendo António de Magalhães da Companhia de Jesus, e missionário na sua Corte de Pequim; e a esta lembrança determinou Sua Majestade corresponder com outra igualmente afectuosa, mas tendo a notícia que este Imperador era morto, se resolveu a encaminhar a mesma lembrança e agradecimento a seu filho quarto, que lhe ficou sucedendo no Império, sendo um dos fins desta diligência, além de outros mais superiores, o mandarlhe com a remessa de um inestimável mimo, dar o pêsame pela morte do defunto seu pai e os parabéns de sua exaltação ao trono, e para esta empresa foi Sua Majestade servido nomear o desembargador Alexandre Metelo de Sousa e Menezes, a quem também honrou com o carácter de seu embaixador. Embarcou-se o dito embaixador no dia 12 de abril do dito ano na fragata Nossa Senhora da Oliveira, que se achava preparada no porto de Lisboa Ocidental para o conduzir a Macao, e também embarcou com ele o padre Francisco Xavier da Rua, protonotário de Sua Santidade, e advogado do número da Casa da Suplicação, a quem Sua Majestade fez também a honra de mandar à China com a incumbência de secretário dos negócios de sua embaixada. Logo que o embaixador se recolheu à dita fragata o salvou a mesma, e depois o buscaram e visitaram todos os oficiais na sua câmara, e despedidos lhe mandou o capitão de mar e guerra Duarte Pereira pôr à porta da mesma câmara um soldado de guarda, que continuou até sairmos da Barra para fora, que foi no dia 17 de abril, em que houve vento ainda que não muito favorável. Continuou-se a viagem com algum vento, que nos favoreceu até o dia 21 de manhã, em que por causa de outro contrário nos pusemos à capa3 esperando a monção, que nos continuou no dia 25 com bom vento; e neste mesmo dia se ajustou a nossa fragata com a nau em que ia 1 No dia 16 de Junho de 1722, a Nau Rainha dos Anjos que transportava um “grandioso mimo” enviado pelo imperador Kang Xi ao rei D. João V, sofreu um grave incêndio na Baía de Guanabara, junto ao porto do Rio de Janeiro. Para além do presente para o rei português, perdeu-se também o presente da corte chinesa para o Papa Clemente XI. Destes presentes constavam vidros e porcelanas fabricados pelos jesuítas na oficina do palácio imperial. Vide João de Deus Ramos: “As Relações entre Portugal e a China na primeira metade do século XVIII: as Embaixadas de António de Magalhães, S.J. e de Alexandre de Sousa e Meneses”, in Actas do Colóquio -A Diplomacia na História de Portugal, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1990, pp.162-170, e História das relações diplomáticas entre Portugal e a China. I. O Padre António de Magalhães, S. J., e a embaixada de Kangxi a D. João V (1721-1725), Instituto Cultural de Macau, [Macau] 1991. 2 Presente. 3 Pôr à capa é o “estado em que o navio se põe, quando pela força do vento não convém navegar” [i.e. uma forma de retardar o avanço de uma embarcação à vela, comumente usada como 'pausa', de modo a esperar um vento forte ou contrário]. António Gregório de Freitas, Novo Diccionario da Marinha de Guerra e Mercante Contendo Todos os Termos Maritimos, Astronomicos, Construção, e Artilheria Naval (Lisboa: na Imprensa Silviana, 1855), s.v. “Capa” 118-119.

Relação Oficial da Embaixada do Rei D. João V de Portugal ao Imperador Yongzheng em 1725-1728 160 o vice-rei da Índia, em que cada uma fosse continuando a sua derrota sem esperarem as mais naus da frota de Pernambuco e do Maranhão, com quem tinham saído do mesmo porto. Durou o mesmo vento até ao dia 26, no qual pelas dez horas da manhã se descobriu uma nau que não conhecemos se era inimiga, e por este respeito se safou4 a nossa fragata, e se fizeram outras mais diligências necessárias em ordem à peleja, no caso que a houvesse; mas a pouco perdemos a mesma nau de vista, e assim fomos continuando, ainda que com vento já menos favorável, a que se seguiu logo outro de todo contrário, que durou até o dia 30 de abril pela manhã, em que ainda a Nau da Índia se avistou, e então se entendeu ser ela a mesma nau que nos dias antecedentes tínhamos visto, e não conhecemos. No mesmo dia 30 de abril nos faltou todo o vento de repente por causa da terra da Ilha da Madeira, aonde chegámos pelas cinco horas da tarde, havendo-a visto pelas dez horas da manhã, quando já tínhamos também visto as Ilhas do Porto Santo e a Deserta; e daqui para diante não se tornou já mais a ver a Nau da Índia. No dia 2 de maio nos favoreceu o vento de manhã, e continuou no dia seguinte; e no dia 4 pela tarde se descobriram algumas embarcações, que por se não conhecerem nos obrigaram a safar a nossa fragata com toda a diligência; mas a poucas horas obedeceu uma a um sinal de peça5 que se lhe fez, e nos passou pela popa, e então soubemos serem estas embarcações as mesmas que iam para o Maranhão. Assim fomos continuando, e com vento favorável até o dia 14 de maio, em que nos principiaram as calmarias6, que ordinariamente se experimentam ao passar a Linha; e ainda que não tivemos as trovoadas, que outros ali encontram, e com que mais facilmente a Linha se passa; tivemos contudo algumas virações7 com que pouco a pouco nos fomos adiantando, e a passámos. No dia 18 de maio pela tarde avistámos uma nau, que com efeito não conhecemos, se bem que nos deixou a presunção de que era a Nau da Índia de que nos tínhamos apartado, e nesta suposição não houve movimento algum na nossa fragata, e nem no dia seguinte em que ainda se avistou; mas perdeu-se logo de vista por nos adiantarmos com um bom vento, e rijo, que nos favoreceu. No dia 21 de maio pela manhã, e também pela tarde, avistámos três embarcações, que se entendeu serem portuguesas, e por isso se não fez movimento algum na nossa fragata, mas fomos continuando até o dia 23, em que de todo nos faltou o vento depois de uma grande trovoada (que sempre estas pela maior parte costumam deixar naus em calmaria). E no dia 6 de 4 Safar, pôr ao largo. É um “arranjo que se pratica nos navios sempre que é necessário pôr a artilharia e manobra em estado de combate.” Freitas, “Safa-Safa” 304. 5 Tiros de peça que metodicamente se dão para a “inteligência do que se pretende explicar”, ou a manobra que se quer pôr em prática.” Freitas, “Sinais” 311. 6 As calmarias intertropicais, também chamadas doldrums, são um estado de estagnação ou depressão. As calmarias são precedidas de ventos alísios (ou ventos alisados) que sopram de leste para oeste na região do Equador. Estes ventos permitiram a travessia dos oceanos pelos navios à vela, favorecendo a expansão colonial e as rotas comerciais. 7 Ventos brandos e frescos.

Transcrição em Português 161 junho salvou8 a nossa fragata o dia do nascimento do Senhor Dom José, Príncipe dos Brazis9. No dia 13 de junho descobrimos uma nau, que não conhecemos, e nos deixou em suspeita de que era inimiga; e esta mesma suspeita obrigou a fazer-se na nossa fragata algum preparo, com que veio a ficar mais desimpedida para a solenidade da festa do glorioso Santo António, cuja novena se tinha feito com muita devoção de todos, e em particular dos padres missionários da Companhia, os quais em todos os dias nas tardes dela, cada um por seu turno fizeram umas muito elegantes e devotas práticas. No dia 18 do mesmo mês de junho quando já estávamos na altura de 23 graus do sul, que é a mesma do Rio de Janeiro, consultaram entre si os oficiais, se seria mais conveniente arribarmos ao mesmo Rio ou a Batávia10 para esperarmos monção, sem a qual tinham os mesmos por dificultoso o podermos caminhar em direitura de Macao; e assentando entre si, que era mais conveniente arribarmos ao Rio de Janeiro, deram disto parte ao embaixador, que lhe respondeu, que não votava na matéria, porque o governo e direção da nau se lhe não tinha recomendado, mas que sempre lhe parecia mais conveniente o arribarmos em Batávia, aonde poderia achar algumas notícias do estado das coisas da China para onde caminhava. Esta mesma resposta deu também o Muito Reverendo Padre António de Magalhães ao capitão de mar e guerra, que também o buscou na sua câmara, dando-lhe parte do que tinham ajustado; e o mesmo padre depois de dizer-lhe que era inconveniente o arribarmos ao Rio, porque não devia demorar-se sem muita necessidade a jornada, acrescentou, que para chegarmos a Macao não era necessário esperar outra monção, porque tinha ouvido (e eu o ouvi também de pessoas de crédito em Macao) que chegando a Batávia se podia tomar a altura das Filipinas e de Manila (é esta uma cidade e fortaleza dos espanhóis) de donde por todo o mês de outubro se podia entrar na China; mas o capitão de mar e guerra com os mais oficiais seguiram o seu assento, e com efeito se fizeram no rumo do Rio de Janeiro aonde invernámos. No dia 23 de junho se formou ao pôr do Sol no mar um movimento, a que vulgarmente chamam redemoinho, e com razão, pois na forma e semelhança dos que vemos levantar na terra, e com tal excesso se formou, e tão perto da nossa fragata, que nos meteu terror, e também aos oficiais, a quem obrigou a ferrar as velas a toda a pressa para acautelarem o perigo, que muitas vezes sucede com semelhantes movimentos, pois se tem visto levarem consigo as velas pelos ares, arruinando os mastros e deixando as naus cheias de muita água que levantam, mas foi Deus servido, que nos não ofendesse, e se fosse como foi, desfazendo a pouco e pouco à nossa vista. Neste mesmo dia pela noite se lançaram vários foguetes por ordem do capitão de mar 8 Saudar, fazer cortesia, dando salva de artilharia ou mosqueteria. Freitas, “Salvar” 318. 9 Disparos de canhão em celebração do dia do nascimento de D. José príncipe do Brasil (6 de junho de 1714 - 24 de fevereiro de 1777), o terceiro filho de D. João V e futuro rei de Portugal. 10 Batávia, a antiga capital das Índia Orientais Holandesas (1619-1949) e actual Jacarta.

Relação Oficial da Embaixada do Rei D. João V de Portugal ao Imperador Yongzheng em 1725-1728 162 e guerra em atenção ao dia seguinte de São João Baptista, em que também o embaixador festejou o nome de Sua Majestade vestindo-se de gala, com os que o acompanhavam, demais dos oficiais da fragata, que também corresponderam. No dia 25 de junho junto da noite demos fundo defronte das duas fortalezas do Rio de Janeiro, Santa Cruz e São João, e no dia seguinte pelas três horas da tarde nos fizemos à vela, e demos fundo no porto do mesmo Rio havendo primeiro salvado as mesmas fortalezas, as quais também salvaram. Logo que demos fundo chegou o reitor do Colégio da Companhia a visitar o embaixador na fragata, e chegou também ao mesmo fim Luiz Vahia Monteiro a cujo cargo estava justamente entregue o governo; e às suas instâncias foi o mesmo embaixador com ele para sua casa, aonde o hospedou três dias com muita grandeza, assistindo-lhe nos banquetes todos os principais cabos militares, e também o secretário da embaixada, que igualmente deveu ao mesmo governador a atenção de o convidar; e ao desembarque do embaixador para o escaler do governador, em que saímos, o salvou a nossa fragata, salvando-o ao mesmo tempo também a fortaleza de São Sebastião; e quando desembarcou na praia se achavam nela formados os dois regimentos militares, cujos oficiais lhe fizeram todos os cortejos devidos ao seu carácter. Passados os três dias de hóspede se passou o embaixador para umas casas, que se achavam prontas, e muito bem ornadas por contemplação do governador, que também o acompanhou com mais alguns oficiais de guerra; e por ordem do mesmo governador, e para a sua guarda, foi logo uma companhia de soldados, que não aceitou, dizendo, que a não necessitava naquela cidade, de que sua senhoria tinha o governo; mas ainda assim o embaixador mandou repartir dinheiro pelos soldados, e oficiais, excepto os capitães e alferes. Deste tempo por diante foram visitando ao embaixador os ministros de justiça, Senado, e a mais nobreza da cidade, não faltando ao mesmo obséquio os prelados das religiões, a quem, e aos mais, que o visitaram foi o embaixador também visitar a seus tempos; e isto mesmo fez por vezes o ilustríssimo bispo daquela cidade, que depois de nós chegou em 2 de agosto, e o visitou também; e nesta forma se foi o tempo passando até o dia 13 de novembro em que tornámos a embarcar para continuarmos a viagem. Quando o embaixador no dia 13 de novembro saiu de sua casa para se embarcar, se achavam defronte dela formados os mesmos dois regimentos, com que foi recebido quando entrámos no Rio de Janeiro, e os oficiais obsequiaram nesta ocasião com os mesmos cortejos, que lhe haviam feito quando desembarcou. Quem o acompanhou até à fragata, foi o doutor juiz de fora Manuel de Passos Soutinho com os do Senado, e o desembargador Rafael Pires Pardinho, que nesse tempo se achava naquela cidade; e no dia seguinte o foi visitar, e despedir-se dele à mesma fragata o governador com o filho mais velho do Visconde de Asseca, não faltando também alguns padres da Companhia e de Santo António, que também o acompanharam até se embarcar. No dia 15 de novembro nos fizemos à vela, e saímos da barra para fora, tendo salvado as

Transcrição em Português 163 duas fortalezas São João e Santa Cruz, que também nesta ocasião corresponderam; e salvámos também a um moço pardo do Rio de Janeiro, que andava já com pouco ou nenhum remédio flutuando nas ondas, que então eram grandes, sobre uma canoa, ou pequeno barco de pescar, que se lhe tinha virado com perda de três pessoas, que com ele andavam; mas se escapou deste perigo, não escapou de uma doença que teve no porto de Batávia, aonde morreu com todos os sacramentos. Assim fomos continuando a nossa derrota, buscando a altura de 34 graus do sul, e nela ou em pouco mais o Cabo da Boa Esperança, que com efeito não avistámos, e só supusemos montado nos fins de dezembro, pela cor das águas, que víamos mudadas; e nesta suposição fomos buscando a altura de 38 graus em que estão as Ilhas de São Paulo, e de Amesterdão11, para que continuando pelo mesmo paralelo as pudéssemos avistar, e então fazerem os pilotos seus pontos fixos; mas não as avistando se governaram pela estimativa, e fomos continuando, diminuindo a 7 graus do mesmo sul, de donde se navega para o mesmo leste até se avistar a terra. No dia 20 de fevereiro de 1726 nos achámos em 7 graus ao sul, e daí fomos a buscar a terra, a qual avistámos no dia 14 de março na Ilha do Príncipe, e Estreito de Sunda; e até este tempo tínhamos capeado em 29 noites com perda de bom vento, que nos faltava de dia, sendo disto causa o receio de que dessemos em terra antes de o esperarmos. No dia 5 de março pelas onze horas da noite se avistou pela proa da nossa fragata uma embarcação que não conhecemos, porque se foi retirando, e isto quando nós bem desejávamos falar-lhe para nos informarmos do sítio, e distância, em que nos achávamos da terra, e já com bem pouca água, mas ao depois soubemos em Batávia ser a mesma embarcação francesa, e uma que por lhe não darem os holandeses de Batávia socorro, o tomou por força de uma sua nau que entrou no Estreito. No mesmo dia 14 de março, em que avistámos o Estreito de Sunda o entrámos também, e aos 16 pela tarde demos fundo, a fim de se procurar algum prático12 nas várias embarcações dos malaios, que por ali andavam pescando, que nos guiasse até Batávia; mas não o achámos, pelo que fomos continuando até defronte da cidade de Bantão13, aonde também demos fundo (é esta cidade a Corte do Rei de Java, e em que assistem também os holandeses para o seu comércio, e guarda do mesmo rei). Logo que demos fundo saiu o capitão-tenente Henrique Nicolau à mesma cidade, aonde entendemos que haveria o prático, mas não o achou porque era holandês o governador a quem o pediu, e nem tão pouco se lhe quis aceitar uma carta, que o capitão de mar e guerra levava do enviado de Holanda assistente nesta Corte, para qualquer dos portos holandeses aonde chegássemos. 11 A Ilha de Amesterdão (português europeu), de Amsterdã (português do Brasil), ou Île Amsterdam (francês), deve o seu nome em honra da capital dos Países Baixos. É uma ilha francesa, situada no Oceano Índico a 37o 50’S 77o 33’E. 12 Piloto de embarcações, conhecedor e experiente na navegação. 13 Bantam, antiga cidade e sultanato da Ilha de Java, Indonésia. Localizada perto da atual cidade de Banten, na Baía de Banten, no extremo noroeste da Ilha de Java, ao norte de Serang. Atualmente em ruínas, foi o porto mais importante de Java para o comércio de especiarias desde o século 16 até aos finais do século 18, quando o seu porto assoreou.

Relação Oficial da Embaixada do Rei D. João V de Portugal ao Imperador Yongzheng em 1725-1728 164 Na falta do dito prático, de que muito necessitávamos até entrar em Batávia fizeram os oficiais entre si consulta sobre se tomariam por força algum dos malaios, que andavam no mar, mas assentou-se que não era conveniente, porque se não escandalizassem os holandeses seus protectores, de quem esperávamos socorro para continuarmos a viagem, e também por se não exporem a tomar por força algum malaio, que ou não fosse prático, ou sendo-o, maliciosamente nos metesse em algum perigo, e nesta forma fomos buscando a Batávia, a cuja vista nos pusemos no dia 23 sem mais perigo, ou susto, que um que nos causou uma repentina voz de que a nossa fragata tinha dado em um baixo, em que com efeito não tocou, mas sempre passou por muito perto dele. Livre a nossa fragata deste baixo nos pusemos à capa esperando um prático, que o capitão- tenente foi buscar às nossas naus de Macao, que então se achavam no porto de Batávia, e com o que trouxe nos fizemos à vela no dia 25 de março, no qual pela tarde demos também fundo no mesmo porto, e antes de darmos fundo tinha o mesmo capitão -tenente ido pactuar com o general do mar e guerra holandês a forma da salva, que foi de sete peças de uma e outra parte, seguindo-se também a que deram as nossas naus de Macao, a quem a nossa fragata também correspondeu. Logo que demos fundo, foi o mesmo capitão -tenente também a terra saber do governador, se nos consentia naquele porto, e havia algum impedimento para nos refazermos e demorarmo-nos enquanto não chegasse a monção, e como o não houve, nos demorámos naquele porto até os 25 de abril em que com efeito novamente nos fizemos à vela para a cidade de Macao. É Batávia uma cidade de bastante grandeza, que os holandeses edificaram na Ilha de Java em altura de 6 graus do sul; eles a governam despoticamente e têm nela uma companhia opulentíssima, que faz negócio com toda a Ásia, saindo da mesma companhia todos os gastos, que se fazem com o governador, ministros de justiça, e mais cabos de guerra, e gente militar que a defendem. Da altura em que esta cidade se acha se pode coligir o temperamento do clima, que é certamente calidissimo14, e nocivo, como nós experimentámos; é, porém, abundantíssima dos frutos que produz a Ásia, e lhe não falta o bom que se cria na Europa, porque tudo os holandeses de lá levam para o seu regalo. Tem esta mesma cidade admiráveis e vistosos edifícios, e também são vistosas e agradáveis as mesmas ruas, porque pelas mais delas correm canais de água, em que os holandeses andam embarcados e se recreiam. O tratamento da gente é como na Europa, e são sem número as carruagens e cavalos que por elas tirão, ainda para quem as quer alugar. Servem-se os holandeses de malaios de Java, de quem os mais são seus cativos, e como a tais tratam os holandeses a todos os malaios que ali vivem, pois os castigam asperamente como eles merecem, porque são finos ladrões e atraiçoados. Também nesta cidade vivem muitos chinas, uns de cabelo que não estão ainda pela sujeição ao tártaro, e que o não reconhecem por senhor, e outros sem cabelo que reconhecem 14 Muito quente.

Transcrição em Português 165 ao mesmo tártaro por senhor da China e lhe obedecem; uns e outros chinas pagam tributo aos holandeses, que os consentem em Batávia, uns porque trazem cabelo e outros porque o não trazem, vindo nesta forma todos os chinas a ser seus tributários, de mais de serem os mesmos que fazem a cidade abundante com a sua indústria e negócio de que somente cuidam. Tem finalmente Batávia não só o vistoso da cidade, mas também o agradável de vários jardins que a cercam e em que os holandeses se recreiam, e por tudo parece Batávia um paraíso na Ásia. Passados quinze dias depois que entrámos em Batávia chegou à nossa fragata um aviso do governador holandês, para que ou nos retirássemos para mais longe da cidade, ou se não continuasse na fragata um tiro de leva15, que costumava dar-se tanto ao amanhecer como à noite, porque fazia o mesmo tiro estrondo nos ouvidos do governador. A resposta que se lhe deu, foi a nossa retirada para um pouco mais longe, e não a que neste caso mereciam, mas estávamos ainda sem monção para fazer viagem, e ainda desprovidos do necessário para a conservação da vida; nesta distância, porém se continuou o tiro sempre, por se não perder o costume. Saímos com efeito de Batávia em 25 de abril de 1726, e quando ainda a monção não era chegada, porque comumente principia pelos 15 de maio, e por este respeito experimentámos várias moléstias; e também por se acharem ainda doentes os mais dos marinheiros e soldados, e nesta forma a nossa fragata sem a gente que era precisa para o trabalho. Nesta forma fomos andando pouco a pouco, servindo-nos algumas trovoadas, a que chamam camâtraz, por causa das ilhas16 assim chamadas, junto das quais passámos. No dia primeiro de maio entrámos no Estreito da Bania17 , e no dia seguinte pelas onze horas tivemos um grande susto, porque deu a nossa fragata em seco, e ficou por algum tempo parada, mas como era sobre lodo e areia, a pouco espaço ainda que com muito trabalho nos livrámos; e assim fomos continuando sem mais susto, que outro que tivemos, indo já defronte das ilhas da China, aonde por muito pouco não tocámos em um baixo, que ali se achava; e por serem muitas e equívocas18 as mesmas ilhas, ainda para os pilotos mais destros na carreira, os quais por esta causa erram muitas vezes o caminho, nos provemos de um china, que ali andava pescando, e nos guiou até avistar Macao que foi em 10 de junho pelo meio-dia. No mesmo dia em que avistámos Macao demos também fundo defronte da cidade, e então saiu o secretário da embaixada a terra com duas cartas de Sua Majestade uma para o governador outra para o Senado, que as receberam com toda a veneração e reverência devida 15 Tiro de canhão que serve de sinal para avisar o levantamento de âncora de um navio ou a saída de uma embarcação do porto. Neste caso, serve para assinalar simbolicamente o início e o fim de algo, ou seja, o amanhecer e o anoitecer. 16 As Ilhas Carimata. São um grupo de ilhas na Indonésia, a sudoeste de Bornéu. Fazem parte do arquipélago das Ilhas Carimata e situam-se no Estreito de Carimata. A maior é a Ilha de Carimata propriamente dita. Administrativamente, o arquipélago situa-se na província de Calimantã Ocidental. 17 Estreito de Bania, ou seja, o Estreito de Banca (Banka, Banca, ou Pulau Bangka). É o estreito que separa a Ilha de Sumatra da Ilha Bangka no Mar de Java, Indonésia. 18 Muitas ilhas e enganadoras (ou perigosas).

Relação Oficial da Embaixada do Rei D. João V de Portugal ao Imperador Yongzheng em 1725-1728 166 a Sua Majestade, em cuja atenção mandou logo o governador e depois o Senado disparar todas as artilharias, repicando-se ao mesmo tempo e ao mesmo fim todos os sinos da cidade; e para o embaixador poder descansar em terra, enquanto se lhe preparavam casas, e o mais necessário para a sua entrada, lhe mandou o governador oferecer as suas, que sem dúvida são as melhores casas que tem Macao mandando-o ao mesmo tempo visitar a bordo por seu filho Agostinho Carneiro de Alcaçova, que era o ajudante real, com quem foi também o padre João Laureate da Companhia de Jesus, procurador que era daquela vice-província da China, e ao presente se acha falecido. No dia seguinte 11 de junho visitou também ao embaixador a bordo o cónego João do Casal19 em nome do ilustríssimo bispo seu prelado, a quem os anos e os achaques desculpavam o não sair fora; e o mesmo fizeram o governador, e procurador do Senado, a quem serviu de desculpa a não ir todo, a lida em que andavam sobre fazer os preparos para o desembarque e habitação do mesmo embaixador, que foi em umas casas sitas na Praia Grande, que o mesmo Senado fez ornar com boas armações, e um docel20 de cetim branco bordado de ouro. Desembarcou com efeito o embaixador no dia 13 de junho para as suas casas na maneira seguinte: ia em primeiro lugar o embaixador em um escaler bem preparado, que o governador lhe pôs pronto, acompanhando-o no mesmo escaler os seus gentis-homens, e na proa do mesmo escaler ia um timbaleiro21 tocando timbales, e alguns pretos tocando também em clarim de prata com as armas reais pendentes; e ao mesmo tempo que se tocavam os clarins e timbales, se ouvia o estrondo das artilharias tanto da nossa fragata, como das mais naus, que se achavam naquele porto, e das fortalezas, que todas estiveram disparando artilharia até que o embaixador desembarcou. Logo se seguia outro escaler, em que iam os Reverendos António de Magalhães, e vice-reitor do Colégio da Companhia, o ajudante real, o capitão mandante das companhias, e também o secretário da embaixada; em outro escaler iam vários padres da Companhia; e em outro todos os oficiais da nossa fragata. E nesta forma desembarcou o embaixador na Praia Grande defronte das suas casas, aonde para o desembarque se tinha preparado uma ponte de madeira, que lhe não serviu por se arruinar uma escada, e ao mesmo tempo que o embaixador queria subir por ela; e foi nestes termos necessário desembarcar em terra e na mesma praia, onde se achavam formados todos os militares daquele presídio, cujos oficiais o obsequiaram com as cerimónias políticas e militares; e se achavam também o governador, o Senado, nobreza da cidade e os prelados das religiões com muitos religiosos mais, que o acompanharam até se recolher, sendo inumerável a multidão 19 João de Casal, O.S.A. (Castelo de Vide, Portugal, 1641-Macau, 20 de setembro de 1735) foi um sacerdote católico português e bispo de Macau entre 1690 e 1735, sendo o seu bispado de 45 anos, o mais longo que a diocese de Macau já teve. João de Casal teria nesta altura 85 anos e estaria adoentado, sendo nesta altura representado por um outro religioso. 20 Dossel é uma cobertura ornamental, de madeira ou tecido, sustentada por colunas, que se estende sobre cama, trono, altar, leito ou liteira. 21 Aquele que toca timbale (espécie de tambor formado de uma semiesfera de cobre, coberta por uma pele esticada).

Transcrição em Português 167 dos chinas que concorreram a ver este acto. Logo que o embaixador se recolheu para as suas casas se lhe pôs uma companhia de granadeiros de guarda, a qual sempre continuou enquanto estivemos em Macao; e o foram também visitando o governador, o Senado, os prelados das religiões, e nobreza da cidade; e até o bispo o visitou em pessoa, sem embargo dos seus muitos anos, e achaques, com que se achava. O embaixador lhes não pagou logo em pessoa as visitas, que lhe fizeram, por razões e políticas da China, que se ponderaram; mas sempre os mandou visitar por um de seus gentis-homens, enquanto ele mesmo os não buscou. Seguiu-se logo ao desembarque do embaixador, também o desembarque do mimo que El-Rei Nosso Senhor mandou ao Imperador da China, que se recolheu em uma casa de Francisco Xavier Doutel, onde esteve alguns dias com guarda de soldados, até que o embaixador o mandou conduzir para as suas casas, e ao depois para a casa do governador, aonde sempre esteve, e se examinou o estado em que iam as coisas para se comporem quando o necessitassem, e se conduziu o mesmo mimo para a casa do governador pela maneira seguinte. Achavam-se defronte das casas do embaixador em duas fileiras, a companhia de soldados da sua guarda, e a da nossa fragata. Logo foram saindo os caixões, e se foram pondo por sua ordem no meio das fileiras para daí se conduzirem. Feito isto se principiou a marchar indo na dianteira de tudo os trombeteiros tocando; atrás se seguia o ajudante real, o capitão-tenente, e alferes da companhia da guarda do embaixador, e a mesma companhia formada; depois se seguia o ouvidor geral, e atrás dele todos os caixões, a quem carregavam cafres em uma só fileira. Logo se seguiam os dois juízes ordinários, e juízes vereadores do Senado, e em último lugar a companhia da nossa fragata. A ver este acto concorreu também muito povo, em que entravam inumeráveis chinas; e enquanto durou estiveram as fortalezas todas salvando por sua ordem. Logo que o governador recebeu o mimo fez fazer disso termo, e entrou com cuidado a examinar as coisas, as quais todas se achavam sem corrupção, menos os dois panos de raz22 que ao depois na Corte se acharam comidos da traça. Nos primeiros três dias seguintes ao desembarque do embaixador lhe deu o Senado banquete, e a toda a comitiva com grandeza, e ao depois por todo o tempo, que assistimos em Macao, lhe assistiu o mesmo Senado com todo o necessário, não faltando com coisa alguma para os gastos de sua casa, aonde para o mesmo efeito tinha pessoas que tinham cuidado dos gastos, e de comprarem tudo quanto se lhe pedia; e até deputou o mesmo Senado dois homens de governo, com quem pudesse tratar-se tudo o que fosse necessário, e conduzisse para os gastos 22 Panos ao estilo de Arras, cidade do norte de França, famosas na Europa de então, e que passaram a adotar a designação de panos-dearrás ou de raz. Do presente enviado por D. João V ao Imperador Yongzheng constava uma tapeçaria do Paço da Ribeira constituída por nove panos, retirados do riquíssimo recheio do palácio mandado construir pelo rei D. Manuel, mais tarde destruído pelo terramoto de Lisboa de 1755. Esta tapeçaria teria então quase dois séculos e por ser antiga e frágil não resistiu à viagem marítima. João de Deus Ramos, “Uma Tapeçaria do Paço da Ribeira para o Imperador Yongzhen,” in Estudos Luso-Orientais, Séculos XIII-XIX (Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1996) 85-89.

Relação Oficial da Embaixada do Rei D. João V de Portugal ao Imperador Yongzheng em 1725-1728 168 e tratamento do embaixador, a quem também deu o mesmo Senado com alguns particulares 1,700 taéis (que na nossa moeda fazem dezassete contos) para os mais gastos que se haviam de fazer na viagem à Corte de Pequim; e para o mesmo deu também mil taéis (que são dois mil e quinhentos cruzados). A província da Companhia de Jesus de Japão quinhentos taéis mais (que fazem 500 reis) à vice-província da China; e tudo isto se lhe entregou a ele que recebeu, como donativo, que se fez a Sua Majestade. Apenas entrámos em Macao logo o Senado fez aviso por meio dos tribunais, e ministros inferiores como é costume na China, ao Tu yuen de Cantão, a quem nós os europeus chamamos vice-rei, de como àquela cidade tinha chegado o Muito Reverendo António de Magalhães a quem o Imperador Kam Ky tinha mandado com um mimo para El-Rei de Portugal, de quem tinha sido recebido, e tinha chegado também um embaixador de Portugal para felicitar a exaltação do presente Imperador ao trono; e outro semelhante aviso fez também o Reverendo Padre António de Magalhães em carta, que escreveu ao Reverendo Padre José Pereira da Companhia de Jesus, que residia em Cantão para o participar ao mesmo vice-rei. Logo que o Reverendo Padre José Pereira em Cantão recebeu o aviso do Reverendo Padre António de Magalhães, lhe respondeu, dizendo, que o não participava ao vice-rei, enquanto não sabia, se lhe tinha chegado o aviso do Senado; porque não sabia, se eram ambos os avisos conformes, mas ainda assim avisou, que tinha buscado o vice-rei como quem o visitava, e sem declarar o fim da sua visita, que era ver se ele lhe falava na matéria da embaixada, de que já o supunha sabedor por via dos mandarins de Macao (são estes uns alfandegueiros, que ali assistem para cobrarem os direitos pertencentes ao seu Imperador) que se não costumam descuidar, e que o mesmo vice-rei lhe havia dito as palavras seguintes: “cá tenho notícia, que é chegado um homem grande do vosso reino, que vem pagar párias23 ao nosso Imperador”; -“Sim senhor [avisou também o padre que lhe respondera] também eu tenho notícia que é chegado a Macao esse homem grande, e que vem por embaixador do nosso Rei de Portugal ao vosso Imperador, e não a pagar-lhe párias, que costumam pagar-lhe os reinos vizinhos, e dependentes, em cujo número não entra o nosso reino de Portugal, e melhor (avisou também o padre que lhe dissera) vos está a vós, que um rei tão grande, e independente, como o nosso, mande de tão longe gratuita, e afectuosamente um embaixador só para felicitar a exaltação do vosso rei ao trono; de que vos está, que um rei pequeno e dependente lhe mande pagar estas tais párias”; e que a isto respondeu o vice-rei: “assim é, tendes razão, vede o que quereis que eu obre, que em tudo me tendes pronto”. Sem embargo deste aviso que fez o Reverendo Padre José Pereira entrou o embaixador a duvidar, se seriam bastantes os avisos do Senado de Macao, para que ele não concorria para se conseguir o passaporte de que necessitava para entrar na China, e passar à Corte de Pequim, e se resolveu nesta dúvida a fazer uma conferência sobre o modo mais conveniente de procurar o dito passaporte, convocando para ela o governador da cidade, e os Muito Reverendíssimos padres 23 Pagar tributo. Tributo que um príncipe pagava a outro em reconhecimento de superioridade. O beneficiário devia, por seu lado, garantir protecção militar ao tributário contra os inimigos.

Transcrição em Português 169 da Companhia de Jesus, António de Magalhães, João Laureate, e o vice-reitor do Colégio de Macao com outros mais padres da Companhia que ali se achavam, e tinham vindo de Cantão, e por voto de todos se concluiu, que o meio melhor, e mais conveniente, era valer-se o embaixador do vice-rei de Cantão, escrevendo-lhe com o aviso de sua chegada em Macao, e pedindo-lhe lhe houvesse o passaporte de seu Imperador, a quem o mesmo embaixador devia também escrever, e pedi-lo por via do mesmo vice-rei. Na conformidade do que se ajustou na dita conferência, escreveu o embaixador duas cartas, uma para o Imperador, e outra para o vice-rei de Cantão, e ambas estava determinado a fazer-lhe remeter logo, mas suspendeu-se por alguns dias a remessa com a vinda do Reverendo Padre José Pereira a Macao, porque visitando ao embaixador, reprovava o meio que se tinha elegido de se escrever ao vice-rei, e dava por razão, que a versão da carta do embaixador se havia formar com letras, ou caracteres grandes, para denotar a preeminência de quem a mandava, segundo os costumes sínicos, e que então poderia o vice-rei, que era temerário e soberbo, responder-lhe com outras letras maiores, e tratá-lo nesta forma, como a seu inferior, que não era, e não há dúvida que estas razões do reverendo padre deixaram ao embaixador suspenso e cuidadoso, no que se havia de resolver, mas sempre concluiu, em que fossem as cartas, e que o mesmo padre as poderia levar e fazer entregar ao vice-rei, com quem tinha entrada, cujo favor havia segurado de antes, pois a sua carta para o vice-rei ia escrita com letras europeias, com que se costumam escrever todas as cartas entre os europeus, sem nenhuma distinção, e a versão dela, se devia entender feita por mandado do mesmo vice-rei, que podia mandá-la fazer com letras ou caracteres que ele muito quisesse. Nesta determinação veio por último a consentir o dito padre, levando consigo as cartas, para as entregar ao vice-rei de Cantão, achando modo conveniente, e logo o embaixador lhe advertiu, que em Cantão não desse resposta a perguntas que lhe fizesse, excepto, se lhe perguntassem pelo número das pessoas da sua comitiva, que eram 64 entrando 30 soldados24 que determinava levar para a sua guarda. Partiu o dito padre para Cantão aos 30 de junho, e no mesmo dia chegou a Macao um mandarim da casa do vice-rei, segundo ele mesmo disse ao governador de Macao, com quem unicamente falou, com mais dois mandarins inferiores do Hu pu, ou alfândega, que os chinas têm na mesma cidade. Logo que este mandarim se avistou com o governador, entrou a lisonjeá-lo, dizendo-lhe, que era o melhor governador e o mais benigno homem que tinha governado Macao. Que os chinas vizinhos reconhecendo-o assim, e que ele os favorecia, lhe viviam muito obrigados; e depois passou logo a perguntar-lhe que era feito das coisas que vinham para o seu Imperador, e se acaso ele governador as tinha em sua casa? O governador lhe respondeu, que era escusada a sua pergunta, quando em todo o Macao era pública a veneração e respeito com que as mesmas coisas tinham sido conduzidas das casas do embaixador para as suas; mais lhe perguntou o mandarim, que coisas eram as que El-Rei de Portugal mandava ao seu Imperador? O governador lhe respondeu, que o não sabia, mas que lhe constava serem 24 A comitiva era constituída por 64 elementos, dos quais 30 eram soldados.

Relação Oficial da Embaixada do Rei D. João V de Portugal ao Imperador Yongzheng em 1725-1728 170 curiosidades de Portugal. Perguntou-lhe mais quando havia o embaixador de ir para Cantão? E o governador lhe respondeu, que o não sabia, sem primeiro o vice-rei de Cantão, a quem o Senado já tinha avisado da sua chegada, o mandar buscar, e conduzir pelos seus mandarins; e com estas respostas sem mais perguntar se despediu o mandarim, e partiu segundo se entendeu para Cantão. No dia 2 de julho se passou o embaixador para a Ilha Verde, que é pouco distante, e dos padres da Companhia, e o sítio mais divertido, que por ali há; ali esteve o embaixador até os 15 do mesmo mês, em que se recolheu às suas casas, e em todo este tempo foi assistido dos mesmos padres da Companhia e tratado com toda a grandeza. Também neste meio tempo chegou um aviso do mandarim da vila de Hiam xan Hyen, a que os nossos chamam a vila de Anção para o governador de Macao, em que o advertia da notícia que tinha, de que se andavam uns ladrões preparando para assaltarem a dita ilha, como já de outras vezes o tinham feito com perda e cuidado dos padres, e foi bastante o dito aviso para que logo o governador de Macao pusesse guardas ao embaixador, e mandasse todas as noites vigiar os mares no que ele mesmo se ocupou também a primeira noite depois do aviso. No dia 6 de julho chegou ao Senado de Macao a resposta do aviso que tinha feito a Cantão da chegada do embaixador e do Muito Reverendo António de Magalhães. Era a dita resposta do Puchim-çu [布政使] de Cantão, que é o tesoureiro da fazenda imperial, e vinha por meio do Chy hyen, ou governador da vila de Anção, nela ao depois de se repetir a substância do aviso do Senado, como é costume na China, passava o mesmo Puchim-çu a inquirir o tempo, em que o embaixador queria ir para Cantão, e juntamente o Reverendo António de Magalhães; perguntava mais pelos nomes dos sete padres, que o mesmo havia levado de Portugal, e pretendiam passar para Pequim concluindo em perguntar mais, se a nossa fragata tinha ido tão somente a levar o embaixador, ou levava mais algum género de negócio? E esta pergunta se encaminhava, como depois soubemos, a que a mesma fragata pagasse também direitos, a que lá chamam medição, como pagam todas as naus, que saem de Macao a fazer negócio quando se recolhem. O Senado lhe respondeu a todas estas perguntas pela maneira seguinte: “o embaixador de Portugal somente espera, que os ministros do Imperador lhe alcancem licença da Corte para logo partir para ela, e se não quer demorar em Cantão, nem em outra parte do caminho. O Reverendo António de Magalhães foi mandado a Portugal pelo Imperador aos 60 anos de seu reinado com um caguate25 (é o mesmo que nós chamamos mimo) a Sua Majestade portuguesa, de que se agradou muito; traz sete sujeitos dos quais pretende levar consigo dois, que são matemáticos para o serviço do Imperador. Ele se acha de presente maltratado, quando se achar convalescido mandará aviso ao mandarim para partir para Cantão. O barco é de Sua Majestade portuguesa, que o mandou para esta embaixada”. 25 Saguate, saugate. Presente, dádiva, mimo, o que se oferece nas ocasiões festivas ou em homenagem. Vocábulo corrente entre os escritores antigos, sobretudo na Ásia portuguesa e na África Oriental. Sebastião Rodolfo Dalgado, Glossário Luso-Asiático (Coimbra: Imprensa da Universidade, 1919) 2:271.

Transcrição em Português 171 No dia 9 do mesmo mês de julho chegou ao Senado de Macao outra chapa, ou aviso do vice-rei de Cantão por meio do Puchim-çu ou tesoureiro da fazenda, e do governador da vila de Anção, em que depois de se repetir a resposta supra do Senado, se lhe procurava outra vez o tempo em que o embaixador e o Reverendo António de Magalhães queriam passar para Cantão, e assim mais se o embaixador levava carta de Sua Majestade portuguesa, e algumas coisas mais para o seu Imperador, concluindo com tornar a pedir os nomes dos sete sujeitos, e a perguntar se os dois matemáticos tinham de mais alguma habilidade, e que de tudo lhe mandasse o Senado a resposta com clareza. O Senado lhe respondeu: “o embaixador somente espera, que os ministros do Imperador lhe alcancem licença da Corte para logo partir para ela, e não se quer demorar em Cantão, nem em outra parte do caminho: traz carta, e algum mimo de Sua Majestade portuguesa para Sua Majestade sínica (aqui houve uma equivocação, em que por então se não advertiu; e foi, que perguntando-se ao Senado, se o embaixador levava Piau ven, lhe respondeu com aprovação do mesmo embaixador, que sim sem advertir, e reparar, que Piau ven quer dizer carta de inferior para superior, e que este nome não devia dar-se à carta de Sua Majestade de Portugal, mas sim outro conveniente, que não denotasse inferioridade alguma, como é o nome Kue xu que quer dizer, carta de rei para rei, mas tudo com advertência superveniente, ao depois se emendou, porque nunca mais se respondeu, que o embaixador levava carta, quando se perguntava, se levava Piau ven) o Reverendo Padre António de Magalhães no fim deste mês irá para Cantão com os dois matemáticos para ir para Pequim”. No dia 10 do mês de julho chegou a Macao carta do Reverendo Padre José Pereira com a notícia de que tinha chegado a Cantão, e falado ao vice-rei, mas que lhe tinha parecido conveniente o não lhe entregar as cartas, que o embaixador escreveu por ele por se estar o mesmo vice-rei oferecendo para si, e em seu nome haver do Imperador o passaporte que se pretendia, e que o mesmo vice-rei ficava de o mandar avisar a Macao pelo Chifú26 que é o governador da cidade de Cantão, por quem mandaria também perguntar-lhe com individuação pelas coisas do mimo de Sua Majestade para o seu Imperador, e com este aviso se esperava em Macao a vinda do Chifú na forma da promessa do vice-rei ao dito padre. Não veio porém a Macao o dito Chifú e governador de Cantão, e só mandou em seu nome uma chapa ao Senado, em que lhe mandava dizer o seguinte: “que ele tinha aviso do mandarim da vila de Anção, de que tinha chegado a Macao uma nau de Portugal, em que ia o padre António de Magalhães e um embaixador de Sua Majestade a dar os parabéns ao seu Imperador da sua ascenção ao trono, e que o mesmo embaixador estava doente. Que mandava saber, quando queria ir para cima, e se levava alguma carta, ou mimo para o Imperador? Que para esta diligência mandava quatro jorabaças, ou intérpretes chinas, e um meirinho a sabê-lo dos senhores da cidade; que levando carta, ou mimo lhe remetessem a lista para ele fazer aviso aos mais tribunais”. 26 Chifu (chin. 知府 Chí-fú). O equivalente ao Alcaide na China. Dalgado, “Chifu” 1:272-273.

Relação Oficial da Embaixada do Rei D. João V de Portugal ao Imperador Yongzheng em 1725-1728 172 A esta chapa do Chifú de Cantão com o parecer do embaixador, como nas mais ocasiões respondeu o Senado na maneira seguinte: “o embaixador não está doente; quer ir para Pequim. Logo que o Imperador lhe der licença vem a dar os parabéns ao mesmo Imperador da sua exaltação ao trono da parte de Sua Majestade portuguesa; diz que traz carta e um mimo, que consta de trinta caixões; que não teve ordem de El-Rei seu amo para dar a lista do mimo, e que por essa razão o não fazia: porém se for vontade do Imperador, que ele faça lista, não tem dúvida alguma a fazê-la; diz o padre António de Magalhães que ele está já melhorado, e que quer ir no fim deste mês para cima com os dois matemáticos para tratar de ir para Pequim; e como em Macao não tem embarcação o mandarim lhe mande uma, e um mandarim para o acompanhar, e fica esperando”. Aos 18 do dito mês chegou acaso a Macao o governador das armas da vila de Anção, que andava vigiando os mares com duas fragatas de guerra, e logo na tarde do mesmo dia visitou ao embaixador, que o recebeu com muito agrado e cortesia sem faltar ao costume sínico, de que a este tempo, e para o mesmo acto o tinham informado os Reverendíssimos António de Magalhães e Caetano Lopes, vice-reitor do Colégio da Companhia, que nesta ocasião lhe serviu de intérprete. Lembrando-se uns e outros de certo desgosto, que ia tendo o Patriarca Mezabarba legado pontifício no ano de 1720, porque em Macao debaixo do docel de que o china não usa, recebeu uns mandarins que o buscaram, dando-lhe assentos muito inferiores, sem atender ao costume da China, que pedia lhe desse outro, ou melhor tratamento, e mais vindo, como vinham a visitá-lo e a fazer-lhe algumas perguntas da parte dos ministros superiores de Cantão. Para o recebimento deste governador das armas da vila de Anção tinha o embaixador mandado pôr na sua segunda sala quatro cadeiras em duas fileiras, duas de fronte das outras, segundo o costume daquele país, e nas mesmas depois de o vir esperar fora da primeira sala aonde estava o docel, se assentaram todos, tendo o mandarim o primeiro e principal lugar, que conforme ao seu costume era o que ficava ao lado direito quando se entrava, e o último e segundo o costume lhe assistiam ao mandarim e também ao embaixador os seus criados, que lhe costumavam assistir. Estando nesta forma se saudaram, e falaram em algumas coisas que lhe pareceu, havendo em primeiro lugar o embaixador perguntado ao mandarim pela saúde do Imperador, e o mesmo mandarim também pela saúde de Sua Majestade de Portugal, e a tudo se juntou a cerimónia do chá que é indispensável nas visitas na China, e se despediu o mandarim tornando-o o embaixador a acompanhar até o fim da sala livre, e os dois padres também até à porta da rua aonde esperaram que ele se metesse na cadeira, ou andor, em que tinha vindo e se despedisse. Constava o acompanhamento e estado deste mandarim de vários chinas, e insígnias, que se ordenavam na maneira seguinte: iam em primeiro lugar dois chinas gritando em altas vozes, como quem advertia, que ia o mandarim, e lhe fizessem caminho; depois se seguiam dois chinas cada um com uma batica, ou bacia de cobre tocando de tempos em tempos; logo se seguiam outros dois chinas cada um com seu azzorrague na mão; seguiam-se logo outros dois cada um com uma cadeia de ferro; atrás iam outros dois chinas, cada um com um comprido pau de

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