DIREITO DO JOGO
Título: Direito do Jogo. Volume I Autor: Jorge A. F. Godinho (jg.macau@gmail.com) Coordenação Editorial: Filipa Guadalupe CRED-DM Centro de Reflexão, Estudo e Difusão do Direito de Macau www.creddm.org Fundação Rui Cunha Conselho de Administração: Rui Cunha (Presidente); Rui Pedro Cunha, João Tubal Gonçalves (vice-presidentes); Isabel Cunha, Connie Kong (vogais) Director Executivo: Filipa Guadalupe (filipa@fundacao-rc.org) Concepção Gráfica e Paginação: FRC Global Communications Ltd, Carlos Canhita, Célia Brás, João Ruivo Telefone: (853) 28923288 E-mail: cred-dm@fundacao-rc.org Correio: CRED-DM – Publicações, Fundação Rui Cunha, Avenida da Praia Grande, nº 749 – R/C, RAEM, RPC Sede, Administração, Publicidade e Propriedade: Avenida da Praia Grande, nº 749 – R/C, RAEM, RPC 澳門南灣大馬路749號 Propriedade / Editora: Fundação Rui Cunha Preço (Macau): MOP 240 Impressão: Fundação Rui Cunha Data: Maio 2016 Tiragem: 200 ISBN: 978-99965-665-0-9 © Jorge Godinho, 2016
A arrematação do exclusivo do Fantan é sempre um acontecimento de importância em Macau. Movem-se os capitalistas; movem-se os advogados, que por estas ocasiões sempre ganham grossas maquias; fervilha a nuvem dos parasitas e dos pescadores de águas turvas; estabelecem-se combinações de todas as naturezas; fazem-se os pactos mais extraordinários; e, a despeito de haver sempre a pretensão de se conhecer os oferecimentos prováveis das praças, estas representam a maior parte das vezes uma caixa de surpresas dando lugar às mais inesperadas conclusões. Álvaro de Mello Machado (1883-1970; Governador interino de Macau entre 1910 e 1912), Coisas de Macau, Livraria Ferreira, Lisboa, 1913, p. 31.
7 DIREITO DO JOGO Bibliografia do Autor em Matéria de Direito do Jogo a) Publicações académicas — «Casino gaming in Macau and other Asian jurisdictions», in Ihno Gebhardt (ed.), Glücksspiel. Ökonomie, Recht, Sucht, 2.ª ed., deGruyter, Berlim, 2016 (no prelo). — «Do Fantan ao Bacará: a evolução dos jogos de fortuna ou azar em Macau», in Legisiuris de Macau em Revista, n.º 6, 2015, 11 ss (português e chinês); e in Fernanda Frazão, Jorge Nuno Silva e Lídia Fernandes (orgs.), Jogos em perspectiva: de Lisboa a Macau, Apenas Livros, Lisboa, 2014. — «A abertura de casinos no Japão. Um desafio para Macau?», in Legisiuris de Macau em Revista, n.º 4, 2014, 29 ss (português e chinês). — «Casino gaming in Macau: evolution, regulation and challenges», in UNLV Gaming Law Journal, vol. 5(1), 2014, 1 ss. — «An overview of the history of games of chance», in Nuno Mendonça and Christopher Cottrell (eds.), 10Years of Gaming Success, Plural Media, Macau, 2013, 37 ss. — «As proibições de entrada nos casinos», in Legisiuris de Macau em Revista, n.° 2, 2013, 11 ss. — «A prevenção do branqueamento de capitais nos casinos em Macau», in Legisiuris de Macau em Revista, n.° 1, 2013, 15 ss (português e chinês); versão inglesa: «The prevention of money laundering in Macau casinos», in Gaming Law Review and Economics, vol. 17(4), 2013, 262 ss. — «A nova lei do tabaco», in Legisiuris de Macau em Revista, n.° 1, 2013, 148 ss (português e chinês). — «A history of games of chance in Macau: Part 2 — The foundation of the Macau gaming industry’, in Gaming Law Review and Economics, vol. 17(2), 2013, 107 ss. — «A history of games of chance in Macau: Part 1 – Introduction», in Gaming Law Review and Economics, vol. 16(10), 2012, 552 ss. — «Menores em casinos: é necessário alterar a lei?», in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Macau, n.º 29, 2010, 61 ss; e in Revista de Direito Público, ano II(4), Jul-Dez 2010, 127 ss. — «The regulation of gaming and betting contracts in the 1999 Macau Civil Code», in Gaming Law Review and Economics, vol. 11(3), 2007, 572 ss. — «Crédito para jogo em casino»,in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade
8 JORGE GODINHO de Macau, ano XII, n.º 25, 2008 (mas 2010), 91 ss.; versão inglesa: «Credit for gaming in Macau», in Gaming Law Review and Economics, vol. 10(4), 2006, 363 ss. b) Jurisprudência crítica — «Should credit agreements between casinos and patrons be subject to prior Government approval? A note on Wynn Resorts (Macau) S.A. v. Mong Henry», in Gaming Law Review and Economics, vol. 14(7), 2010, 541 ss. c) Artigos mais curtos ou de imprensa — «A radical smoke ban for Macau casinos?», in Asian Gaming Lawyer, vol. 1(2), 2015. — «Jogo: as reformas necessárias», in Ponto Final, 15 de Junho de 2015; versão inglesa: «Gaming in Macau: what reforms are needed?», in Asian Gaming Lawyer, vol. 1(1), 2015. — «G2E Asia 2015: a bipolar conference», in Asia Gambling Brief, Maio de 2015. — «iGaming Congress 2015 round up», in Asia Gambling Brief, Março de 2015. — «Para quando um museu do jogo?», in Ponto Final, 22 de Março de 2013. — «Ferreira do Amaral: o fundador da moderna indústria do jogo», in Ponto Final, 23 de Agosto de 2012. — «Apostas desportivas. Quo vadis?», in Ponto Final, 20 de Junho de 2012. — «Alterações à lei do jogo (parte 1). Os funcionários públicos não podem entrar em casinos. Porquê?», in Ponto Final, 4 de Novembro de 2011. — «Casinos em Taiwan», in HojeMacau, 16 de Outubro de 2009. — «Macau gaming law: what next?», in Macau Business, Junho de 2008. — «Las Vegas, Macau», in Macau Business,Agosto de 2006. — «Moving fast to regulate the Macau dragon», in Casino and Gaming International, n.º 3, Jul-Ago, 2006. — «Online gaming: to play or not to play?» in Macau Business, Dezembro de 2006. — «Gaming concessions unplugged», in Macau Business, Março de 2006. — «The enforcement of gaming debts in Macau», in Macau Business, Maio de 2005.
9 DIREITO DO JOGO Advertências — A bibliografia é citada de modo completo na primeira ocorrência e de modo abreviado nas seguintes, com remissão para a primeira citação. ― As disposições legais citadas sem a indicação de uma fonte específica pertencem à indicada no início do respectivo capítulo ou secção ou à que se deduz do contexto. — As citações dos três contratos de concessão e dos três contratos de subconcessão de jogos de fortuna ou azar vigentes são feitas da seguinte forma: • Onde as cláusulas dos contratos de sub/concessão tenham o mesmo conteúdo, apenas o número da cláusula é dado; p. ex., cl. 29. • Onde a citação se refira a um contrato de sub/concessão específico, o nome do sub/concessionário é dado, em formato abreviado; p. ex., cl. 29 Wynn; cl. 30 Galaxy; cl. 31 SJM; cl. 32 Venetian; cl. 33 MGM; ou cl. 34 Melco Crown. — As romanizações utilizadas são as comuns em Macau e amplamente usadas nas fontes citadas. São em regra derivadas do cantonês, mas em alguns casos são provenientes do mandarim. — Os valores monetários indicados referem-se à actual moeda de Macau, a pataca (MOP), salvo indicação expressa em contrário. As referências monetárias a patacas de datas anteriores a 1901 referem-se à moeda de prata equivalente a oito reais que então circulava amplamente, o real de a ocho, igualmente conhecida como peso duro espanhol, peso de oito, peso forte, peso duro, dólar espanhol ou pataca. ― O jornal oficial de Macau é citado apenas como Boletim Oficial. Não são indicados os vários títulos completos que teve de 1838 aos nossos dias, desde Boletim Oficial do Governo de Macau a Boletim Oficial da Província de Macau,Timor e Solor ao actual Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau, entre outros. ― Para não sobrecarregar o texto de itálicos e obter alguma uniformidade, os nomes de jogos provenientes de línguas estrangeiras são indicados, contrariamente ao que seria a regra, sem itálico. ― Os itálicos em citações constam no original, salvo indicação em contrário. ―Não se adopta o acordo ortográfico da língua portuguesa de 1990, como de resto acontece em Macau em geral. ― As traduções para português são do autor, salvo indicação em contrário.
Índice Bibliografia do Autor em Matéria de Direito do Jogo 7 Advertências 9 Índice 11 Prefácio 15 PARTE I Introdução Capítulo I - O jogo e o Direito 23 1. O jogo a dinheiro 23 2. O direito do jogo 25 3. Delimitação negativa e zonas de fronteira 30 4. Jogar (to play) o jogo (the game) 35 5. O jogo como facto institucional 38 6. Dados e cartas 40 7. A base científica do jogo organizado 43 8. A expansão do jogo autorizado 48 9. O jogo e o direito 50 10. Interdisciplinaridade 53 11. O carácter incipiente do direito do jogo 57 Capítulo II - O jogo organizado 61 12. O jogo organizado: aspectos gerais 61 13. Opções políticas fundamentais 63 14. A suposta imoralidade do jogo 66 15. Jogo e forma de Estado 68 16. A regulamentação dos jogos de fortuna ou azar 71 PARTE II Contratos de Jogo Capítulo I - Evolução histórica e direito comparado 79 17. A interdisciplinaridade 79 18. Direito Romano clássico 80 19. Justiniano 85
20. Idade Média 87 21. A punição do jogo na China imperial 88 22. A diferenciação dos seguros 89 23. Barbeyrac e Pothier 92 24. O Código Civil francês 95 25. O BGB 97 26. O Código suíço das obrigações de 1911 99 27. O Código Civil italiano de 1942 101 28. Elementos adicionais de direito comparado 102 Capítulo II - A experiência portuguesa e macaense 106 29. Ordenações Afonsinas 106 30. Ordenações Manuelinas 109 31. Ordenações Filipinas 111 32. Pascoal de Mello Freire 114 33. Código Civil de Seabra 116 34. A legalização dos jogos de fortuna ou azar de 1927 121 35. O Código de 1966 123 36. As leis do jogo de Macau 127 Capítulo III - Tipologias 129 37. Aproximação e metodologia 129 38. O texto do Código Civil 131 39. A ausência de noção legal 132 40. Sequência; classificações e tipologias 134 Secção I - Classificações gerais 136 41. Contratos patrimoniais 136 42. Contratos onerosos e sinalagmáticos 137 43. Contrato bilateral ou plurilateral 140 44. Tipicidade e atipicidade dos contratos de jogo 141 Secção II - Notas típicas 143 45. Dos contratos aleatórios em geral 143 46. O jogo no âmbito dos contratos aleatórios 150 47. Elementos essenciais dos contratos de jogo 154 48. Função económico-social 156 49. Figuras próximas 159 50. Tripartição de base: jogos, apostas e lotarias 166
51. As limitações do Código Civil 172 52. O jogo e a sistemática legal 178 Secção III - Jogos, apostas e lotarias 181 53. Jogos em geral 181 54. Jogos de perícia 183 55. Jogos de fortuna ou azar 185 56. Apostas em geral 188 57. Apostas mútuas 192 58. Apostas à cota 193 59. Lotarias em geral 196 60. Lotarias instantâneas 205 61. Jogo interactivo 207 62. Sequência 210 Capítulo IV - O Código Civil e o jogo tolerado 211 63. Ideias fundamentais 211 64. A tripla referência a leis especiais 214 65. Conteúdo; as regras dos jogos 217 66. Obrigações naturais 219 67. Obrigações civis 224 68. Competições desportivas 233 69. Invalidade e ilicitude 234 70. Fraude ao jogo 235 PARTE III A Indústria do Jogo de Macau Capítulo I - Conspecto histórico geral 239 71. Tipos de jogo autorizado em Macau 239 72. Ferreira do Amaral e o jogo autorizado 245 73. Contexto institucional 251 74. A base jurídica 253 75. Pacapio e Fantan 255 76. Concorrência de Hong Kong (1867-1872) 263 77. A arrematação dos exclusivos 264 78. A Junta da Fazenda 266 79. As condições do exclusivo no século XIX 268
80. Arrematantes nos finais do século XIX 271 81. O conluio de 1877 274 82. A ascensão e queda da lotariaVaeseng 282 83. Reformas no final do século XIX e início do século XX 287 84. A resistência à expansão da indústria do jogo 293 85. A fase moderna 313 Capítulo II - Enquadramento e supervisão 315 86. A autonomia da RAEM 315 87. O jogo como sector reservado 318 88. As concessões em geral 319 89. Fontes aplicáveis 324 90. As concessões de jogo 325 91. Objectivos das políticas públicas 327 92. As concessões de jogos de fortuna ou azar 330 93. Estruturas administrativas em geral 331 94. A Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos 332 95. As comissões do jogo 335 96. Outras entidades de Macau 337 97. Jogo, direito internacional e soberania estadual 339 Capítulo III - Perspectivas de evolução 342 98. Jogos de fortuna ou azar 342 99. Apostas desportivas 352 100. Lotarias 353
15 DIREITO DO JOGO Prefácio Este livro procura oferecer uma panorâmica geral do direito do jogo. O jogo é aqui entendido como o conjunto formado por todas os jogos, apostas e lotarias em cujo desfecho é arriscado património.Trata-se, na expressão popular, do «jogo a dinheiro», no preciso sentido explicitado no texto. A exposição versa o sistema jurídico da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China. É por isso dedicada uma especial atenção à exploração comercial, autorizada por lei e efectivada por meio de contratos administrativos, dos jogos de fortuna ou azar ― uma área em que Macau é líder mundial e tem uma história longa e riquíssima,de 1849 até hoje.No entanto,como seria de esperar, a obra não se limita à realidade de Macau e busca construções dogmáticas transponíveis para outros sistemas jurídicos, desde logo para Portugal. A navegação destas águas rodeia-se de múltiplos escolhos que dificultam a investigação e contribuem para explicar as limitações desta pesquisa: a) a interdisciplinaridade do tema; b) a sua sensibilidade ético-social e mutabilidade; c) os problemas postos pelo secretismo, pela falta de transparência e pela dificuldade de acesso a certas fontes; d) a grande exposição mediática; e) a complexidade regulatória reinante; f) a escassez de jurisprudência e de doutrina; g) vários limites à investigação histórica. Justifica-se assim um prefácio anormalmente longo como forma de prestar indicações metodológicas sobre os instrumentos disponíveis na rota e logo sobre o que terá ficado por descobrir. a) O jogo é matéria radicalmente interdisciplinar em sentido amplo: convoca saberes de vários continentes como a matemática e o cálculo de probabilidades, a psicologia, a sociologia e a criminologia, a economia e a gestão de empresas, as finanças públicas ou a informática, entre outros. E é matéria interdisciplinar no âmbito jurídico: convoca vários ramos do direito e perspectivas normativas de análise. Onde o jogo a dinheiro seja interdito tratar-se-á basicamente de uma narrativa jurídica proibicionista e punitiva, ou seja, penal e de polícia. Lá onde seja autorizada e regulada a oferta de jogo em massa tal relevará desde logo dos ângulos administrativo, fiscal e comercial. Onde o jogo não organizado em moldes comerciais seja tolerado surgirão especiais discussões do ponto de vista contratual-civil. Estas perspectivas jurídicas coexistem na prática: como se sabe, Macau autorizou e regulamentou a exploração comercial de várias formas de jogo, mas existem contextos de jogo que são proibidos por lei penal e há ainda jogo que é meramente tolerado. Esta natureza interdisciplinar nada tem de paradoxal
16 JORGE GODINHO ou surpreendente ― mas representa um trajecto multipolar que logo à partida se anuncia particularmente complexo. A investigação aqui empreendida procura naturalmente abarcar todas estas dimensões e não se cifra num discurso em redor da chamada «indústria do jogo». Deste modo, de um ponto de vista académico e prático, o tema pode ser uma tábua de ensaio da compreensão de certas formas de articulação de dados provenientes de diferentes ramos de direito, com vista à unidade da ordem jurídica. b) O jogo acena de modo tentador com a possibilidade de realizar o sonho, aspiração ou utopia que é viver sem ter de trabalhar. É enorme o poder de atracção de lotarias ou jackpots onde é real ― embora extremamente remota ― a possibilidade de mudar de vida e passar a navegar sem ter de remar. O jogo torna numa realidade palpável o sonho de um atalho rápido para uma vida melhor. Mas viver sem trabalhar sempre foi objecto de condenações morais de todo o tipo; e as actividades de jogo sempre foram vistas como improdutivas. O mundo do trabalho contrapõe-se diametralmente ao domínio onde o jogo se inscreve, o do ócio, do entretenimento, da diversão e do prazer. Em geral, a regulamentação dos ócios, prazeres ou vícios (tabaco, álcool, drogas, sexo, jogo) sempre foi e pelos vistos sempre será matéria de grande sensibilidade ética, política e social, e, por isso, susceptível de produzir uma miríade de respostas às duas questões de base que o poder político se coloca sobre cada forma de jogo: legalizar ou não e porquê e, em caso positivo, em que termos concretos. Haverá aqui que fazer alguma análise político-social, que por vezes se reflecte com clareza nas construções dogmáticas dos juristas. Considerando não apenas Macau, a cartografia resultante tem sido historicamente algo móvel e propensa a avanços e retrocessos pendulares da fronteira entre o lícito e o ilícito ― com um cortejo de mutáveis preocupações sociais, campanhas públicas de «limpeza» ou outras iniciativas análogas por vezes resultantes de populismos instigados por moral entrepreneurs.Ainda que autorizado, o jogo não deixa de ser um moving target político-económico-social, como o demonstra, no caso de Macau, a sua história, feita de períodos de estabilidade intervalados de momentos de mudança brusca, dando origem a épocas muito marcadas e diferentes entre si. Mesmo onde certas formas de jogo comercial sejam lícitas, surgem ainda assim múltiplas vias de procurar conter uma sua desmedida expansão, que por vezes se intensificam. Em todo o caso, em Macau a evolução é muito menos acidentada do que noutros portos, embora se avistem na sua história algumas descontinuidades em virtude de transformações de visão política sobre a indústria em geral, ou sobre certos segmentos da mesma, ou em relação a uma sua configuração concreta, no quadro de uma gestão pública algo centrada na
17 DIREITO DO JOGO navegação à vista, incapaz de esclarecer dúvidas sobre o futuro da indústria a longo prazo, que, no entanto, foi quase sempre crescendo.A evolução é sincopada desde logo em virtude da natureza estruturalmente transitória do regime jurídico das concessões, de onde resulta que nas várias épocas o concreto figurino adoptado marca cada período de maneira indelével, mas é por definição transitório e mutável; e tende a ser algo esquecido logo que substituído por outro. Estamos num domínio que comunga da mutabilidade e transitoriedade características do direito público. Acresce que uma análise detalhada de cada concessão revela diferentes andamentos e preocupações e prioridades, ou «fases», na sua vivência. Como se sabe, a actual regulamentação dos jogos de fortuna ou azar resulta das transformações operadas em 2001-2002 pelo primeiro Governo da RAEM do Chefe do Executivo Edmund Ho (g. 1999-2009), com o abandono do regime de exclusivo a favor de um oligopólio. Sabe-se que os anos que decorreram desde 2002 têm sido caracterizados por uma evolução muito rápida, em alguma medida imprevisível, muito acima de quaisquer expectativas ou previsões razoáveis, o que tem vindo a colocar novas questões a um ritmo assinalável, de que se procurará dar conta. c)A indústria do jogo,sempre rodeada de estritos deveres de confidencialidade e mesmo de uma certa cultura de secretismo que vai para além da proverbial «alma do negócio», é por natureza de investigação difícil. Esta opacidade ocorre quer no sector público quer no sector privado. Mas se no sector privado, hoje fortemente concorrencial, tal nevoeiro é em larga medida compreensível, no sector público faltam documentos oficiais, tais como relatórios anuais da entidade de supervisão ou outros estudos aprofundados que prestem informação ao público sobre o que se vai passando na indústria, nomeadamente em matéria de infracções punidas ou decisões administrativas tomadas, ou mesmo sobre o próprio conteúdo das instruções ou outras indicações da DICJ, que podem não ser conhecidas ou tornadas públicas, daqui resultando barreiras à investigação do regime vigente ou ao conhecimento efectivo da forma como é interpretado e executado pelo regulador. Pode-se recordar a este propósito o polémico caso do jackpot ganho por uma jovem de 16 anos em 2007, que veio a ser pago na sequência de indicação da entidade supervisora nesse sentido, mas sem que a respectiva fundamentação tenha sido divulgada.Tudo isto pode dificultar o debate jurídico informado das questões. d) A grande sensibilidade político-económica do tema explica uma enorme atenção mediática local, regional e internacional sobre certos aspectos da indústria do jogo, de resto inteiramente justificada, embora por demasiadas vezes se observe alguma cedência à tentação do sensacionalismo. O tema sempre foi delicado
18 JORGE GODINHO dada a gravíssima dependência económica e financeira da navegabilidade do modo de vida de Macau das receitas dos jogos de fortuna ou azar. Hoje por sua vez dependentes do mercado do Bacará VIP, que gera constantes interrogações e incompreensões sobre as actividades dos promotores de jogo, em especial no interior da China, bem como sobre a origem dos fundos apostados e sua forma de circulação. Na vertente política recorde-se o óbvio mas nada despiciendo facto de que a indústria consiste num poderoso centro de interesses privados económicos e financeiros.A composição da Assembleia Legislativa de Macau, onde pontificam vários deputados com ligações directas à indústria, ou o possível peso na luta política norte-americana, designadamente através de financiamentos em apoio dos candidatos presidenciais, são exemplos da sua presença junto dos centros de poder. No sector não escasseiam personalidades muito vincadas, o que reforça o interesse de meios de comunicação social propensos a investigar líderes carismáticos, empreendedores e visionários. As alegações da existência de práticas de duvidosa natureza aumentam e alimentam o interesse do jornalismo investigativo e da informação em geral, caracterizada pela existência de um número assinalável de publicações que, a título exclusivo ou não, se ocupam da indústria do jogo. e) De um ponto de vista regulatório ou de supervisão o cenário é de novo complexo. A indústria interessa aos directos reguladores do jogo em Macau e outras jurisdições, como a República de Singapura, ou vários Estados dos EUA, com o Nevada à cabeça, bem como à administração fiscal. Há ainda a considerar supervisores financeiros como a Autoridade Monetária de Macau e os reguladores das bolsas de Hong Kong e dos EUA, já que todas as sub/concessionárias de jogos de fortuna ou azar estão cotadas. É conhecida a tendência para alguma aplicação extraterritorial das leis que regem as operadoras norte-americanas. No plano penal, o assunto interessa a entidades especializadas como o Gabinete de Informação Financeira ou as que se ocupam da prevenção e combate à corrupção dentro e fora de Macau, entre outras. Não é aqui possível dar conta de todas estas dimensões externas, sendo o discurso centrado no ordenamento jurídico de Macau. f) A principal ausência no debate jurídico das questões do jogo é a da jurisprudência, o que se deve a uma outra nota estrutural: uma total inexistência de litígios sobre questões administrativas do jogo, talvez em virtude de algum temor reverencial das partes, prudência ou aversão cultural a resolver problemas em tribunal, dando-se preferência a negociações de bastidores ― embora este estado de coisas possa estar a começar a mudar. Nunca existiu um processo em tribunal administrativo contra o Governo de Macau sobre questões de jogo. Por outro lado, a doutrina não abunda. Salvo algumas excepções recentes, os autores de língua
19 DIREITO DO JOGO portuguesa nunca se interessaram muito pela problemática do jogo, porventura tomando nota do facto de que, não por acaso, as normas de onde arrancam os debates no direito privado se situam no fim do elenco dos contratos tipificados no Código Civil, uma colocação sistemática muito pouco abonadora. g) O leitor não deixará de notar que a obra contém desenvolvimentos de índole histórica de dimensão superior ao normal na investigação jurídica. Cremos que são aprofundamentos importantes: como tantas outras realidades, o direito do jogo deve ser entendido no contexto da sua concreta evolução. Cabe a este propósito explicitar que os subsídios para uma história do jogo que aqui são incluídos não procuram ser um capítulo da história colonial. Não se trata apenas de saber de que forma os sucessivos Governadores portugueses foram gerindo a criação e arrematação de vários exclusivos e concessões de jogo, especialmente com vista a assegurar o financiamento dos cofres públicos, condição essencial do funcionamento das suas administrações. Tal seria uma perspectiva redutora e pouco apropriada. A história do jogo deve ser global e considerar o entrechoque dos sectores público e privado: governo português de um lado, empresários chineses e macaenses do outro. Estes últimos não eram meros sujeitos passivos de uma história desenhada por governadores europeus e tornaram-se bastante poderosos logo muito cedo, sendo capazes de influenciar de modo significativo o comportamento do governo. Há ainda a considerar o impacto da indústria na sociedade macaense em geral. Sucede, porém, que não é fácil dar conta de todas estas dimensões. E se a conduta do governo é por um lado mais decisiva no rumo da indústria e por outro lado mais fácil de investigar, por haver um registo escrito algo detalhado, a investigação esbarra na tendência, seguida durante muitas décadas no seio da administração pública, de falar o menos possível do jogo. Em suma, a espiral hermenêutica é assaz turbulenta. Há múltiplos «ruídos» deformadores, normais numa terra onde a cada passo se alimentam especulações sobre tudo e nada, com ou sem fundamento. O jogo é um mundo que tem mais do que o seu normal quinhão de lacunas, silêncios, parcialidades, ambições, concorrência, rumores e outras descontinuidades e desnortes. Por outro lado, são muitos os silêncios de quem tem na verdade um conhecimento correcto dos factos. Tudo isto coloca grandes desafios ao trabalho de investigação, um esforço eremita ou de navegador solitário. Não é extremamente fácil sulcar estes temas, sendo impossível qualquer pretensão de produzir uma cartografia muito detalhada. Haverá deste modo que fazer um esforço de concentração nas questões conceptuais e regulatórias mais importantes e esperar que haja o engenho e a arte de actualizar e expandir a obra em futuras edições. O leitor poderá detectar na
20 JORGE GODINHO panorâmica aqui ensaiada algumas imprecisões ou tratamentos incompletos de alguns tópicos. Em todo o caso, é chegada a hora de assumir o risco da escrita e apresentar o nosso trabalho de mais de uma década ao público e à crítica. O autor agradece quaisquer comentários ou observações, com vista a corrigir, desenvolver, esclarecer e actualizar o livro em edições futuras. O livro é na raiz um produto do ensino do direito do jogo levado a cabo na Universidade de Macau, que tivemos a ocasião de fundar em língua inglesa na licenciatura em gestão com especialização em Gaming Management oferecida pela Faculdade de Gestão de Empresas no ano académico de 2004/2005. Por outro lado, no mestrado em International Business Law oferecido pela Faculdade de Direito, o ensino teve início no ano de 2006/07, sempre em parceria com o Prof. I. Nelson Rose. Muitas das ideias expostas foram apresentadas em numerosas conferências e em vários artigos publicados ao longo da última década, que são aqui umas vezes retomados, outras vezes desenvolvidos ou noutros casos apenas referenciados de modo breve. O livro tem uma dupla dedicatória, profissional e pessoal. No plano profissional, o autor agradece ao Professor I. Nelson Rose — to whom this book is dedicated —, toda a amizade e disponibilidade para diálogos e discussões de ideias, em quase todos os continentes e em variados formatos, sobre os mais diversos tópicos deste campo vivíssimo e fascinante. A obra vai dedicada a quem tudo devo.A meu paiVasco.E à saudosa memória da minha querida mãe, Maria Helena (1939-2014). Macau, Maio de 2016.
PARTE I Introdução
23 DIREITO DO JOGO Capítulo I O jogo e o Direito 1. O jogo a dinheiro É milenar a intencional exposição lúdica ao incerto e ao aleatório, com consequências patrimoniais. O ludere in pecuniam é uma constante humana. As formas de jogo que dependem totalmente da sorte ― como os jogos de dados, as lotarias, o Fantan, certos jogos de cartas como o Bacará, ou a Roleta ― são paradigmas desta deliberada busca de risco com intuito lucrativo. De um ponto de vista jurídico há que lidar com três grandes categorias ou tipos neste domínio: jogos (em sentido restrito), apostas e lotarias. Os jogos são sistemas artificiais finitos de criação de risco e conflito, com finalidade lúdica, entre dois ou mais jogadores, através de objectos de jogo, regras e procedimentos, cujo funcionamento conduz ao apuramento de um resultado que dita o(s) vencedor(es) e o(s) perdedor(es) ― ou um empate, caso as regras o admitam1. As apostas consistem numa divergência de prognóstico ou opinião sobre um facto, normalmente binária, cujo desfecho ou esclarecimento determina o vencedor. As lotarias são uma pura extracção aleatória ou sorteio, por variados processos, nomeadamente mecânicos ou informáticos (através de um gerador de números aleatórios, o random number generator), de que resulta um vencedor ou poucos vencedores e múltiplos perdedores. Existem várias formas híbridas ou de transição entre estas três grandes tipologias. Por outro lado, o jogo pode fazer-se de modo presencial ou à distância, em especial através da internet.A todos estes sistemas lúdicos podem ser associadas decorrências patrimoniais: um investimento inicial ou aposta, e um prémio. O ludere in pecuniam consiste em tentar adquirir património por meio de contratos aleatórios de índole lúdica; visa gerar uma vantagem económica para quem ganha e uma desvantagem para quem perde, através de uma atribuição 1 Seguimos em parte a noção de Katie Salen e Eric Zimmerman, Rules of play. Game design fundamentals, MIT Press, Cambridge MA, 2003, capítulo 7: «um jogo é um sistema através do qual os jogadores participam num conflito artificial, definido por regras, que resulta num desfecho quantificável».
24 JORGE GODINHO patrimonial do perdedor para o vencedor. O jogo a dinheiro comporta dois aspectos estruturais objectivos. O primeiro é o aspecto lúdico-aleatório, que resulta do jogo em si mesmo considerado, das suas regras e da imprevisibilidade objectiva ou subjectiva do resultado. O segundo é o aspecto patrimonial, que resulta de um clausulado económico-financeiro estatuído pelas partes, sobre qual o património que é arriscado e qual será o seu destino como resultado do desfecho do jogo. Esta realidade,que decorre do somatório dos aspectos aleatório e patrimonial, deverá ter uma causa ou função económico-social lúdica, sem a qual haverá porventura um qualquer negócio patrimonial aleatório ou de risco, mas não um contrato de jogo, de aposta ou de lotaria. Assim, o jogo a dinheiro é a deliberada exposição a uma álea, com função lúdica, de que resulta um risco de ganhar ou perder património, de acordo com o desfecho do jogo. Um contrato de jogo lato sensu é um contrato aleatório com função lúdica que cria a chance de adquirir património. Os elementos essenciais de todos os contratos de jogo são três: o património arriscado pelos participantes (a aposta); o que recebe quem ganhar (o prémio); e como se joga, ou seja, como se decide ou apura o vencedor (a álea lúdica). O jogo a dinheiro varia no tempo e no espaço, mas é em si um fenómeno constante, desde logo por ter uma base antropológica. O jogo dá satisfação a uma permanente propensão humana para o risco ou incerteza, da qual, segundo os ensinamentos da psiquiatria, um certo número de indivíduos retira prazer, quer durante o desenvolvimento do jogo (p. ex., quando observa a roleta a girar ou vira de modo deliberadamente lento uma carta no jogo do Bacará) quer em face do resultado. O prazer é sentido através de reacções de tipo não extremamente diferente das provocadas pelo sexo, pelo álcool, pelo tabaco ou pelas drogas, com libertação de dopamina2. O que coloca a problemática do vício ou dependência 2 Cfr. American Psychiatric Association, Diagnostic and statistical manual, 5.ª ed.,Washington DC, 2013 (trata-se do volume conhecido como «DSM-V»), cujo capítulo sobre «substance-related and addictive disorders» passou na 5.ª edição a incluir o jogo patológico (gambling disorder) em ligação com o consumo de drogas. Tal deve-se a «evidence that gambling behaviors activate reward systems similar to those activated by drugs of abuse and produce some behavioral symptoms that appear comparable to those produced by the substance use disorders» (481). Cfr. David Linden, The compass of pleasure. How our brains make fatty foods, orgasm, exercise, marijuana, generosity, vodka, learning, and gambling feel so good, Penguin, Londres, 2011, 126 ss, reconhecendo a validade de uma definição geral de vício ou dependência que recobre várias actividades incluindo o jogo, já que todas elas causam a libertação de dopamina. No caso do jogo em particular, para além de uma libertação se o desfecho do jogo é positivo, observa-se logo uma libertação de dopamina na fase em que se aguarda o resultado, em que se está «em jogo».
25 DIREITO DO JOGO ― jogo patológico ou ludopatia, capaz de arruinar vidas. A propensão para jogar varia de acordo com os indivíduos e as sociedades, sendo relativamente elevada na Ásia oriental. Embora todas as pessoas estejam expostas a riscos na sua vida diária, há níveis diversos de «apetite pelo risco» e «aversão ao risco»:diferentes indivíduos reagem de modo desigual perante situações com resultados incertos. Alguns correrão riscos na esperança de obter benefícios desconhecidos, enquanto outros não.A explicação poderá em parte ser de ordem psicológica e ter que ver com a percepção de prazer ou a sua ausência. 2. O direito do jogo O direito nunca foi neutro para com o jogo a dinheiro. Este constitui um domínio institucional-cultural e jurídico desde há muitos séculos socialmente reconhecido como uma área dotada de problemáticas,polémicas e opções a abordar e resolver com base em princípios e considerações específicas, conducentes a uma regulamentação própria.Trata-se manifestamente de um objecto próprio, pelo que se justifica falar de uma disciplina jurídica autónoma: esta área é um subsector institucionalizado da vivência colectiva. A conceptualização jurídica global do direito do jogo, como matéria interdisciplinar de forte cunho publicista, está por fazer. Geralmente são analisados pela doutrina corrente apenas aspectos sectoriais, em especial civis ou administrativos, sem que a necessária interligação seja operada. Cabe adiantar um conceito de direito do jogo, para assim explicitar e delimitar o campo normativo interdisciplinar da disciplina. O direito do jogo será aqui entendido, enquanto direito objectivo, como o complexo normativo que regula todos os acordos lúdicos em que os participantes pretendem arriscar fundos ou outros bens patrimoniais, que podem ganhar ou perder consoante o respectivo desfecho.Trata-se de enquadrar em termos jurídicos o jogo a dinheiro. Com efeito, uma observação interdisciplinar das fontes legais revela que todas tomam o jogo com implicações patrimoniais e fim lucrativo como ponto de partida da regulamentação. É desde logo o caso do artigo 1171.º do Código Civil, que prevê e regula os contratos de jogo e os contratos de aposta como fontes de obrigações, pressupondo evidentemente que importa regular os possíveis efeitos jurídicos dos contratos em que há património em cima da mesa, mas não já quando assim não seja. Várias
26 JORGE GODINHO definições e regimes legais constantes de legislação avulsa confirmam que é de jogo que paga prémios que se trata. Da definição legal de jogos interactivos consta que nestes «[u]m prémio em dinheiro ou em outro valor é oferecido ou pode ser ganho nos termos das respectivas regras»3. A definição legal de máquina de jogo, particularmente reveladora, afirma expressamente que estas visam o «[p]agamento, como resultado da aposta realizada na máquina de jogo, de um prémio em dinheiro, fichas de máquina de jogo (tokens),bilhetes remíveis em dinheiro ou bens convertíveis em fichas de máquina de jogo (tokens), dinheiro ou valores equivalentes»4. Por outro lado, o propósito de base da legislação de natureza administrativa é regular a exploração do jogo, nomeadamente dos jogos de fortuna ou azar, directamente por entidades públicas ou por sociedades anónimas mediante concessão, pressupondo-se evidentemente que essa exploração é um negócio lucrativo, pelo que, sendo concessionada, é fortemente tributada5.Aliás, é o próprio legislador, através dos regulamentos dos jogos autorizados, que cria a base lucrativa, a house advantage, como veremos adiante. Por fim, em chave penal pune-se a «exploração de jogo de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados»6 e mesmo de certas condutas «nos locais legalmente autorizados»7, bem como a «organização de qualquer modalidade de 3 Lei n.° 16/2001, de 24 de Setembro (regime jurídico da exploração de jogos de fortuna ou azar em casino), art. 2.º, n.º 1, 4), a). 4 Regulamento Administrativo n.º 26/2012, de 26 de Novembro (regime de fornecimento e requisitos das máquinas, equipamentos e sistemas de jogo); art. 1.º, n.º 2, al. 2). 5 O n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.° 16/2001, de 24 de Setembro (regime jurídico da exploração de jogos de fortuna ou azar em casino), dispõe nomeadamente que «A exploração de jogos de fortuna ou azar é reservada à Região Administrativa Especial de Macau e só pode ser exercida por sociedades anónimas constituídas na Região, às quais haja sido atribuída uma concessão mediante contrato administrativo, nos termos da presente lei». Noutro exemplo, a Lei n.º 12/87/M, de 17 de Agosto (exploração de lotarias instantâneas) dispõe que «A exploração de lotarias instantâneas é sempre condicionada a prévia concessão pelo Governador [hoje: Chefe do Executivo], por períodos que não poderão ultrapassar os cinco anos». 6 Lei n.º 8/96/M, de 22 de Julho, art. 1.º, n.º 1, sob a epígrafe «Exploração ilícita de jogo»: «Quem,por qualquer forma,fizer a exploração de jogo de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados ou quem for encarregado da direcção do jogo, mesmo que a não exerça habitualmente, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa». 7 Lei n.º 8/96/M, de 22 de Julho, art. 7.º: «Quem, nos locais legalmente autorizados, explorar jogo de fortuna ou azar ou qualquer tipo de apostas que não obedeçam aos termos dos regulamentos dos jogos, designadamente aceitando apostas sem que para tal esteja devidamente autorizado, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa».
27 DIREITO DO JOGO lotaria ou aposta mútua»8 não autorizada, pressupondo-se que estas são actividades lucrativas, que movimentam fundos e geram lucros, como aliás resulta com clareza da norma que prevê o confisco do «dinheiro e valores destinados ao jogo ou dele provenientes»9, em caso de jogo ilegal. Desta observação interdisciplinar das fontes legais resulta de modo concludente a delimitação do núcleo central do direito do jogo como o direito do jogo a dinheiro. Trata-se de uma noção de recorte preciso, típico das partes especiais: não é o direito de todo o jogo como entretenimento; nem é uma categoria residual no domínio dos contratos patrimoniais aleatórios. O direito do jogo, neste sentido, é o conjunto de princípios e regras jurídicas aplicáveis a quaisquer jogos, apostas ou lotarias em que são arriscados valores patrimoniais pelas partes com a intenção ou consciência de poder ganhar ou perder. Em termos materiais, o direito do jogo é o direito especializado de todo o jogo a dinheiro.O direito do jogo é ainda,enquanto realidade científica,a disciplina académica que estuda, sistematiza, questiona e aprofunda o conhecimento deste domínio. Do exposto resulta que o direito do jogo, tendo na sua raiz uma base contratual, é um domínio interdisciplinar que transcende a bipartição clássica entre direito público e direito privado, já que consiste num corte transversal que inclui elementos de ambos. De um prisma de direito público, são duas as questões de base que qualquer comunidade se coloca sobre todas e cada uma das múltiplas formas de jogo a dinheiro.A primeira é a de saber se a prática de jogo a dinheiro deve ser proibida ou autorizada. Em caso de autorização surge de seguida a necessidade de determinar os termos concretos da sua prática lícita; em caso de proibição cabe delimitar os seus contornos, as consequências, e os meios de a tentar efectivar. As respostas oferecidas a estas questões representam a configuração básica do direito do jogo no que toca às relações com o poder público investido de ius imperii. Num plano jurídico-privado, e desde logo contratual, trata-se de apurar a validade e os efeitos jurídicos dos vários tipos de jogo.Assume especial interesse o 8 Lei n.º 8/96/M, de 22 de Julho, art. 9.º: «A organização de qualquer modalidade de lotaria ou aposta mútua que não esteja devidamente autorizada é punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa». 9 Lei n.º 8/96/M, de 22 de Julho, art. 18.º, n.º 1: «Todo o dinheiro e valores destinados ao jogo ou dele provenientes são apreendidos e declarados pelo tribunal perdidos a favor do Território, quando sejam cometidos crimes previstos nesta lei».
28 JORGE GODINHO estudo das formas de jogo que sejam reconhecidas como válidas no âmbito civil e/ou comercial. O direito do jogo moderno tem como ponto central o estudo da regulamentação da «indústria do jogo» em cada momento autorizada por lei. Mas não se resume a tal. Essa seria uma perspectiva estática e redutora. Mesmo se na prática há necessariamente que dedicar uma parte significativa da exposição à regulamentação da indústria, importa ter uma visão ampla, dinâmica e interdisciplinar das questões colocadas.Todo o campo do jogo a dinheiro deve ser abrangido pela disciplina, da clássica aposta desportiva entre amigos às operações de jogo proibidas pelo direito penal. Foi esta a perspectiva que desde a primeira hora adoptámos na conceptualização e no ensino deste ramo de direito.Veremos adiante que muitos problemas do direito do jogo só podem ser correcta e completamente equacionados e resolvidos de um ponto de vista interdisciplinar. Assim, existe no direito do jogo um objecto sem dúvida claramente identificado e socialmente reconhecido desde há milénios: o jogo a dinheiro. Por outro lado, há nele um princípio fundacional próprio, que reside num especial cuidado e equilíbrio na actuação que um Estado laico, aberto, democrático e racional deve ter. O jogo não deve ser pura e simplesmente proibido, quer por razões de princípio quer por razões práticas ou de eficácia: as proibições absolutas não têm fundamento e a história demonstra que não são eficazes.Assim, visa-se na actualidade uma posição equilibrada, própria deste sector e quase paradoxal: tratase fundamentalmente de permitir a prática do jogo e a sua exploração, no âmbito de um quadro regulador apropriado e exigente, que desencoraje e, na medida possível, evite o jogo excessivo e patológico10. Uma política de «permit but discourage excess» traz resultados. A esmagadora maioria das pessoas que jogam sabe conter-se dentro de limites apropriados, não tendo de ser salva de um risco que no caso não existe.Os esforços devem concentrarse na pequena minoria que efectivamente pode cair em situações patológicas. Para o efeito, o direito do jogo moderno reflecte um conjunto de estratégias diversificadas. Há, no entanto, que ter sempre presente que essas estratégias não poderão nunca produzir resultados infalíveis, eliminando os efeitos pessoais e sociais nefastos do jogo. Trata-se, mais modestamente e com maior realismo, de manter a incidência do jogo patológico num patamar socialmente tolerável, sem que o sistema alguma vez possa conseguir prevenir e evitar todos os problemas. Esta linha de análise é 10 Fundamental,William A. Bogart, Permit but discourage. Regulating excessive consumption, Oxford University Press, Nova Iorque NY, 2010. O Autor recorda e salienta as lições da proibição do álcool nos Estados Unidos e o limitado efeito das proibições legais.
29 DIREITO DO JOGO válida em domínios variados, do jogo ao tabaco, passando pelo álcool.Ao agir nestes domínios, sem paternalismo, a sociedade cumpre para com os seus cidadãos uma «obrigação de meios», não uma «obrigação de resultado»11. No saldo global, sabe-se hoje que o jogo não deve ser banido porque os cidadãos e a sociedade no seu conjunto têm todos mais a ganhar com a sua licitude. Mas também não deve ser activamente estimulado. Este princípio regulador tem reflexos a vários níveis nas disciplinas convocadas. Com efeito, constitui a chave de leitura e ligação dos vectores nucleares da regulação civil (v.g., a questão das obrigações naturais), administrativa (a reserva da exploração do Estado e as concessões a privados), penal (a punição da exploração ilícita e do jogo fraudulento), de restrições à publicidade e de regulação do jogo patológico.Tratase do ponto de vista material que unifica de modo horizontal e dá um sentido de conjunto à regulamentação interdisciplinar vigente. Na doutrina portuguesa, José de Oliveira Ascensão e António Menezes Cordeiro pronunciaram-se contra a existência de um direito do jogo12. Consideramos como «Direito do Jogo» o conjunto de normas jurídicas especificamente destinadas a regular a exploração dos jogos de fortuna ou azar. Actualmente, o essencial desse regime consta do (…) Dec.-Lei n.º 48.912. O diploma citado é a então vigente lei portuguesa sobre concessões de jogo em casino, equivalente à actual Lei n.° 16/2001, de 24 de Setembro, de Macau. Os autores, deste modo, parecem ter do direito do jogo uma concepção restrita, inscrevendo nele apenas os jogos de fortuna ou azar, deixando de fora ― ou não sendo claro o estatuto das normas sobre ― lotarias e apostas. E prosseguem: Chamamos a atenção para o facto de esse diploma compreender, do ponto de vista substancial, normas atinentes a várias disciplinas jurídicas, que vão desde o Direito Administrativo ao Direito Criminal, 11 Considerações análogas são válidas no domínio específico da prevenção do branqueamento de capitais. 12 José de Oliveira Ascensão e António Menezes Cordeiro, «Das concessões de zonas de jogo», in Revista de Direito Público, n.º 3, 1988, ponto II.5.II.Trata-se de uma discussão algo sumária, em duas páginas. As posições aqui defendidas parecem dificilmente compagináveis com as afirmações feitas, muitos anos mais tarde, pelo segundo Autor, em relação ao direito bancário; cfr. infra, n. 85 e texto correspondente.
30 JORGE GODINHO passando pelo Direito Privado, pelo Direito Económico e pelo Direito Fiscal. Não é possível enquadrar todas essas normas num ramo autónomo do Direito, que constituiria, assim, um verdadeiro «Direito do Jogo». Faltam, em absoluto, os dois traços que permitem a autonomização de uma disciplina jurídica: ― a especificidade do objecto; ― princípios ou métodos próprios. Só teleologicamente podemos dizer que existe um objecto unitário de toda a regulamentação em causa: o jogo. Também nunca foram especificados nenhuns princípios substanciais que unificariam as normas atinentes ao jogo. Por outro lado, conforme as normas consideradas, assim o método a seguir; desta forma, às normas privadas há que aplicar o método civil; às administrativas o administrativo e assim por diante. Esta posição não pode ser aceite, por várias razões.Acabámos de especificar o princípio substancial que unifica as normas atinentes ao jogo, a ideia de que o jogo deve existir, rodeado de cautelas apropriadas. Quanto a métodos próprios, diga-se que os Autores têm razão: não existem neste domínio métodos outros que não os elaborados no âmbito das disciplinas convocadas ― mas não têm de existir. Avulta no direito do jogo a sua interdisciplinaridade, uma realidade corrente em qualquer área do direito que transcende as distinções canónicas entre disciplinas jurídicas, como é o caso do direito bancário ou do direito dos seguros. A realidade não obedece às distinções usadas para fins académicos e formativos; é a academia que deve acompanhar a realidade, mesmo que para tal tenha de «transgredir» fronteiras entre disciplinas. Neste quadro, a existência de diversos métodos nas várias disciplinas especializadas que são chamadas na busca da solução dos problemas postos pelo jogo a dinheiro não representa qualquer problema. A interdisciplinaridade deve ser vista como uma riqueza e não como um ponto fraco. O contributo que o direito do jogo pode dar à ciência jurídica é precisamente uma melhor compreensão das articulações entre diferentes disciplinas jurídicas. 3. Delimitação negativa e zonas de fronteira Importa proceder a várias delimitações negativas do direito do jogo, que já
31 DIREITO DO JOGO decorrem do que foi referido nos pontos anteriores. O interesse reside aqui na regulamentação do jogo associado a dinheiro ou outros valores patrimoniais. É este a fonte de todas as polémicas e preocupações, não já a mera existência de passatempos ou distracções: o direito do jogo vai aqui entendido como direito patrimonial. Esta delimitação, feita pela generalidade dos civilistas a propósito dos contratos de jogo, deve estender-se a toda a disciplina. Assim, situa-se fora desta disciplina o jogo unipessoal, sem contrato de jogo. Há múltiplas experiências lúdicas que não implicam a existência de dois ou mais jogadores, já que podem ser praticadas a solo, sem interacção com outrem, nomeadamente como distracção ou passatempo ― da clássica paciência de cartas a múltiplos jogos para computador ou telemóvel disponíveis no mercado, com mais ou menos elementos de perícia ou sorte, mas que não são um confronto bilateral ou multilateral13. Situa-se igualmente fora desta disciplina a regulamentação de todas e quaisquer actividades lúdicas, recreativas ou desportivas enquanto tais ― o fenómeno lúdico enquanto puro entretenimento, desprovido de implicações patrimoniais, em que os participantes nada ganham ou perdem. Se duas ou mais pessoas jogam, sem arriscar património no jogo, permanecem no domínio do puro entretenimento em sentido amplo, que pode incluir realidades muito variadas destinadas a crianças, adolescentes ou adultos, ou actividades desportivas. Com esta delimitação não se pretende afirmar que no jogo solitário ou no jogo sem implicações patrimoniais não se colocam problemas jurídicos, seja a nível contratual14 ou outro. Tal pode sem dúvida suceder. Porém, o ponto de 13 É bem sabido que os jogos podem entreter apenas uma solitária pessoa. É o caso das chamadas «paciências» de cartas, que conduzem ao resultado de o jogador ter ou não conseguido resolver com sucesso a mesma, mas evidentemente não há qualquer possibilidade de assim perder ou ganhar dinheiro. Muitos jogos há que podem ser jogados quer a solo quer contra um ou vários oponentes. 14 Se dois amigos combinam uma partida de ténis, e para o efeito marcam e pagam a utilização do campo com antecedência, a não comparência de um deles pode gerar problemas de responsabilidade, por se ter inviabilizado o jogo. O problema pode ser perfeitamente equacionado e resolvido em face das regras gerais das obrigações e contratos: não é um problema específico de direito do jogo, que se preocupa sobretudo com o resultado aleatório e não tanto com o incumprimento do acordo de jogo, que nem sequer pressupõe dinheiro na mesa. O problema aqui é de falta de comparência e pode-se colocar do mesmo modo para o abandono injustificado da competição. Não temos aqui de entrar neste tema com mais desenvolvimento ― nomeadamente saber se se trata de uma realidade específica do desporto ou de um fenómeno mais amplo de índole contratual, análogo ao que se passa quando uma das partes falta sem justificação a uma reunião ou a um encontro preliminar ou abandona a execução do contrato de modo inopinado. Que a «convenção de jogo» ― ou seja, o próprio acordo sobre a realização do jogo ― pode ter efeitos
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