36 JORGE GODINHO motivação subjectiva. Fala-se por vezes aqui de uma finalidade de entretenimento ou divertimento, oposta ao trabalho, normalmente na linha da conceptualização do historiador e crítico de cultura holandês Johan Huizinga (1872-1945) 24. In extremis, «jogar» pode mesmo ser uma atitude não séria e a etimologia iocus tem este sentido, de acção jocosa (daqui o inglês joke), sendo a problemática respectiva recolhida no Código Civil a propósito das declarações não sérias, feitas com animus iocandi, que carecem de quaisquer efeitos (art. 238.º, n.º 1, CC). Huizinga salienta nomeadamente que as características ou estrutura do jogo estão presentes numa grande variedade de formas de cultura: muitas interacções humanas têm esse elemento ou componente. A prática de jogos é um traço fundamental espiritual e um factor na criação de cultura. Há um certo elemento natural sobre o jogo; Huizinga salienta que alguns animais, como os cães, jogam e divertem-se ao fazê-lo. Em várias civilizações a administração da justiça foi abertamente ligada a processos aleatórios como a decisão por oráculos, ordálios ou sortilégios. É perfeitamente conhecido de qualquer prático do direito que o processo judicial é por natureza de resultado incerto. As partes numa contenda ou disputa correm riscos e adoptam estratégias que visam resultados específicos, que podem falhar. A noção de processo como jogo foi considerada no campo do processo civil por Calamandrei e Carnelutti25. Huizinga afirmou a «qualidade de jogo» dos processos como competições: «Qualquer processo perante um juiz será sempre e em todas as circunstâncias dominado pelo desejo intenso de cada parte de ganhar a sua causa»26. A crítica de Homo ludens tem sido feita a vários níveis27. No presente 24 Para quem «o jogo é uma actividade voluntária, ou uma ocupação, que tem lugar dentro de certos limites estabelecidos de tempo e lugar, de acordo com regras livremente aceites mas estritamente vinculativas, e que se institui como um fim em si mesmo, sendo acompanhado por um estado de espírito de tensão e de alegria, bem como pela consciência de ser “diferente” da “vida normal”»; cfr. Johan Huizinga, Homo ludens. Um estudo sobre o elemento lúdico da cultura, Edições 70, Lisboa, 2003 (trad. port. da ed. original de 1939, com um prefácio crítico de George Steiner), 45. 25 Cfr. Simona Andrini, «Huizinga et le droit: le procès et le jeu in Italie», in Droit et Société, 1991, 27 ss, analisando as posições contrastantes dos dois juristas italianos sobre o processo. 26 J. Huizinga, Homo ludens (n. 24), 78. 27 George Steiner, no seu prefácio, embora reconhecendo as muitas virtudes de Homo Ludens, não deixa de ser bastante crítico. Num primeiro nível, Huizinga, seguindo a crítica liberal que Peter Geyl lhe formulou (in «Huizinga as accuser of his age», citado no prefácio de Steiner), teria uma visão que diríamos quase pré-moderna do jogo, elitista e de alta burguesia: «Sendo no seu íntimo um mandarim, um elitista impregnado dos ideais e do conforto da cultura da alta burguesia, a visão que Huizinga tem da cultura é persistentemente selectiva e nostálgica»; (…) «a História torna-se na pompa
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