Jorge Godinho - Direito do jogo - ABAMAPLP

37 DIREITO DO JOGO contexto importa sobretudo salientar que uma abordagem comportamental, sendo interessante e relevante, não é a decisiva num discurso jurídico. Cabe aqui dar primazia à perspectivação do jogo enquanto norma (game)28: sistema de regras ou esquema contratual a que se podem referir normas civis e comerciais, administrativas, penais e outras. Há que conferir centralidade ao jogo como instituição e não às atitudes e modos de agir dos jogadores. Não se pretende com isto negar que uma análise da conduta do jogador enquanto tal não seja susceptível de colocar uma série de questões jurídicas.Tal é uma evidência: da sua capacidade às condutas ilícitas que possa praticar, maxime viciando o jogo, passando pelo comportamento dentro de espaços de jogo. A acção de jogar (to play), como divertimento, passatempo ou entretenimento, ou com «espírito lúdico»29, não pode festiva de uma minoria criativa, aristocrática e muito versada nas letras. Daí a inferência lúgubre, presente em Homo Ludens, de que a democracia, por si mesma, significa o fim do verdadeiro jogo e, consequentemente, dessa construção elegante e intrincada que só Huizinga rotula como civilização» (11). Por seu lado, concordando com a crítica de Geyl, Steiner aduz alguma falta de contacto de Homo Ludens com avanços à época recentes das ciências, com directo interesse para a compreensão do jogo, nomeadamente da matemática e da psicologia (Freud),o que o leva a considerar que a obra «evidencia as marcas de um género anterior» e «parece pertencer a um outro tempo»; cfr. George Steiner, no Prefácio, 13. Com efeito, Huizinga parece colocar no século XVIII o que seria uma espécie de apogeu das formas «puras» de jogo. Escreve que «Para jogar realmente, um homem deve jogar como uma criança» (223). É por isso algo pessimista sobre os desenvolvimentos ocorridos no seu tempo, sendo por exemplo crítico da organização do desporto: «No caso do desporto, estamos perante uma actividade nominalmente conhecida como jogo, mas elevada a um grau tal de organização técnica e de profundidade científica que o verdadeiro espírito de jogo se encontra ameaçado», vendo aqui «um excesso de seriedade» (223). Sobre o desporto cfr. infra (n. 386) as observações de Costa Andrade. 28 Nas traduções inglesas o título da obra usa a palavra play e não game: assim, Huizinga, Homo ludens.A study of the play-element in culture, Routledge e Kegan Paul, Londres e Boston, 1949 (reed. de 1980, com indicação do tradutor de que se trata de uma tradução preparada a partir da tradução alemã e de uma tradução inglesa feita pelo próprio Huizinga pouco antes da sua morte); assim, Homo Ludens corresponde a Man the Player e todo o discurso se desenvolve em redor do play, da playsphere e por aí adiante, em múltiplos contextos culturais. No seu prefácio à tradução italiana, Umberto Eco formulou a crítica fundamental de que Homo ludens não tematizou expressamente se a cultura é game ou play. Huizinga limita a sua análise à segunda hipótese, que parece dar por adquirida, o play ― o elemento lúdico na cultura ―, mas não debateu de que modo os motivos e contextos culturais se fazem de normas (rules of the game); cfr. Simona Andrini, «Huizinga et le droit: le procès et le jeu in Italie» (n. 25), 35 ss. 29 É sobretudo neste plano que se coloca Huizinga, no sentido de que toda a criação cultural humana comporta um elemento de jogo.O acto de jogar (to play) é algo que comporta uma dimensão de alegria, divertimento, passatempo ou entretenimento, bem como de desafio. O jogo é neste sentido contraposto à acção de «trabalhar», que coenvolve uma dimensão de submissão, obrigação ou mesmo algum sofrimento. Esta perspectiva não é frutuosa numa investigação jurídica, que não deve assentar

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